Cister. Os Documentos Primitivos ou a identidade
de um Projecto Monástico
Introdução
«Quando, em 1098, alguns
monges da abadia de Molesme, mosteiro situado nas fronteiras da Champanha
e da Borgonha, fundado por um grupo de eremitas em 1075, tomam a iniciativa de deixar o seu mosteiro e partir para uma
outra fundação não o fazem de ânimo leve. A própria data escolhida para tal
efeito é plena de significado. Estava-se a 21 de Março, festa de S. Bento,
que nesse ano coincidia com Domingo de Ramos. Celebrar a Páscoa longe do
mosteiro a que se haviam acostumado e no qual haviam feito profissão de
fidelidade à Regra de S. Bento e
jurado estabilidade exigia não apenas uma ruptura, mas decisões espirituais
profundas. A frente do grupo estava Roberto, abade de Molesme, monge de
diversas experiências monásticas e habituado a acudir a quem solicitava o seu apoio
espiritual. A decisão fora tomada de acordo com o legado pontifício, Hugo, arcebispo de Lião que, para
o efeito, indagou dos reformadores as suas intenções. Tratava-se de optar por
uma vida mais perfeita e sem molestar aqueles que na própria abadia de Molesme
pretendiam continuar o género de vida a que se haviam acomodado.
Não constituía isso um acto impensado nem ele era invulgar nos tempos
que corriam. A própria abadia de Molesme surgira de uma procura de renovação
e o espírito do abade Roberto não podia deixar de inquietar-se com a quebra de
fervor monástico. A saída, porém, exigia motivações e apoios, pois, não havia
muito tempo, os monges que se tinham retirado para outro lugar, Vivicus, tinham sido obrigados a
regressar à origem pelo bispo de Langres, devido a reclamação dos monges molismenses. No entanto, dois nomes
desses monges são reconhecíveis, pois se trata de Alberico e de Estêvão
Harding, e somos levados a pensar que os motivos eram bem profundos e
sentidos.
As razões que esse novo grupo, agora de seis monges, Roberto, Alberico,
Eudes, João, Estêvão, Letaldo e Pedro, apresenta ao arcebispo de Lião pareciam
motivo mais que legítimo à luz da canonística do tempo. O argumento que passa
para os documentos era o de que em Molesme se estava a viver a Regra de uma forma tíbia e negligente, tepide et negligenter, e eles pretendiam
praticar essa mesma Regra de modo estrito.
Se a interpretação de vida negligente não parecia bastar, pelo que a reinterpretação
dos cronistas posteriores não hesita em dramatizar as tensões existentes,
transformando-as em discussões que servem uma narrativa, o propositum era plenamente louvável e estava de acordo com tendências
espirituais do tempo, em que a reforma era tanto mais desejada quanto nela pesavam
factores de espiritualização contra a feudalização da vida monástica e de
reacção contra a intrusão dos poderes civis dentro da Igreja e a sobreposição
dos poderes temporais sobre os espirituais, nomeadamente na questão das
investiduras reclamadas pelo imperador do Sacro Império.
NOTA: Veja-se o texto de Orderico Vital e o de Guilherme
de Malmesbury; não se deixe de ter em conta que a Molesme acodem
espíritos de grande exigência como Bruno, fundador da Cartuxa, e Estêvão
Harding que conhece a prática beneditina de outras abadias, mas procura
integrar a vida de ermita a que depois se dedicou. O próprio bispo de Troyes,
Hugo II de Dampierre, quando um dia passa por Molesme tem de contentar-se
com pão seco. Um dos grandes benfeitores do mosteiro foi Eucles I, duque da
Borgonha, que depois apoiará também Cister. Antes de 1080, os hábitos de vida monástica de Molesme
nada tinham a ver com as facilidades de Cluny. É possível que com os benefícios
recebidos tivesse havido uma transferência insensível para os hábitos desta
observância, com a aceitação de rendas, priorados, etc., prática que Roberto
não terá conseguido evitar, pelo que se refugiou por algum tempo junto dos eremitas
de Auch, ainda que a pretexto de os auxiliar na orientação monástica.
A retirada para o eremus que
uma bula pontifícia de Urbano II consagra algum tempo depois, em enquadramento
que poderia parecer depreciativo, pois se trata de obrigar ao regresso de Roberto,
a quem os monges de Molesme inicialmente haviam dado anuência, mas a
quem agora reclamam em apelo para o papa, argumentando com os prejuízos que
tinham advindo para a comunidade monástica, tal retirada era, a um tempo, simbólica
e real». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições
Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.
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