quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Quem personificava o elo da concórdia? Quem destruiu a harmonia? Uma história que desmistifica os caminhos de uma família considerada perfeita e nos revela as sombras de um império»


Cortesia de wikipedia e jdact

Volta à terra que te viu nascer
«Mar fora, a caravela lá foi atravessando o Mediterrâneo na direcção da costa portuguesa. Quando o comandante e o piloto avistaram os longos areais algarvios, verificaram que estavam adiantados em relação ao que tinham previsto, agradecendo às boas condições do tempo e à Virgem Maria, que lhes endireitou o caminho para ali chegarem. Mesmo assim, sempre alerta, sabiam que tudo seria mais seguro só depois de passar o cabo de São Vicente, zona de turbulência marinha quando as condições eram desfavoráveis, mas também por ultrapassarem os mares onde a pirataria magrebina e genovesa faziam as suas presas. Tirando isso, quando passassem por Sines fariam proa ao estuário do rio Sado , para não se afastarem muito da costa e poderem contornar o cabo Espichel muito próximo da margem, iludindo as dificuldades criadas pelo vento de noroeste, dominante na costa oeste portuguesa na maior parte do tempo.
Não era só por isso que queriam aproximar-se das escarpas do cabo. Olhando de baixo para cima, do mar para os píncaros retalhados das rochas, podiam ver o sítio de oração no alto da falésia de Nossa Senhora do Cabo, ou Mua, como os autóctones gostavam mais de lhe chamar. Era ali a fronteira espiritual para agradecer os bons ventos da viagem, posto que depois as dificuldades para chegar a Lisboa já não eram nenhumas. O piloto, executando com autoridade a arte de marear que conhecia desde mancebo, governava o barco seguro de que o encargo que tomou não tardaria a estar concluído.
Na nave seguia um certo fidalgo, pouco sabedor dos mistérios do mar, mas que mandava de voz grossa e costas quentes:
  • Só visto, pensou o piloto, já tenho navegado em muitos navios, mas nunca vi capitão que falasse tão de barriga cheia como este.
O piloto não tinha nem nunca teve qualquer intenção de se opor às ordens, fosse o que fosse que o outro exigisse, mas também, verdade se diga, o homem apenas lhe pediu que a viagem tivesse o seu fim em Lisboa quando o Sol já estivesse há muito desaparecido e a noite fosse tão alta que da margem se não vissem nem sombras: - Recomendo-te. Mais do que isso, exijo dos teus conhecimentos a competência para fundeares em Lisboa com a noite caída, tão escura quanto a Lua a fizer, ordens simples e indiscutíveis do verdadeiro comandante do navio. Com o tempo que fazia e todo o tempo do mundo, o piloto não teria qualquer problema em cumprir o que lhe fora ordenado, e mesmo o avanço que levava até ajudava, porque logo que ultrapassasse o Espichel podia perfeitamente fundear na larga baía do Tejo, bem longe dos habituais olheiros do mar à vista.
Assim se fez. Na noite caída, quando a primeira hora do dia não faz diferença da última do dia anterior, a caravela lançou ferros, sigilosa, a uma distância de trinta braças da praia, e aí se quedou misteriosa, quase invisível, numa certa noite de Junho do ano de 1472. Ao entrar na barra do Tejo, o navio foi surpreendido por uma neblina persistente, qualquer coisa que arrancava ao mar fumos opacos, propícios à obediência dos silêncios e à fácil construção de fantasias. Na noite invisível não se via vivalma na margem do lado do Restelo, nem dela se avistava o navio, de luzes apagadas à chegada, num vislumbre de reserva que ordens superiores determinaram.
Contrariamente ao bulício que durante o dia animava aquela zona do Tejo, percorrida por gente sempre de atalaia no horizonte, naquela hora, o mais profundo sossego esbatia-se na densidade do nevoeiro e nem o manso marulhar das ondas chegava para impor os habituais sons da água a rebentar na areia. Poucas pessoas viviam na zona onde as caravelas se despediam. Naquele tempo, a praia do Restelo distava de Lisboa huma legoa bem medida, mais longe nessa altura do que os três mil passos que Damião de Góis dizia serem precisos para chegar, na primeira metade do século XVI, até à primeira extremidade de Lisboa». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT