Volta à terra que te viu nascer
«Mar fora, a caravela lá foi atravessando o Mediterrâneo na direcção da
costa portuguesa. Quando o comandante e o piloto avistaram os longos areais
algarvios, verificaram que estavam adiantados em relação ao que tinham
previsto, agradecendo às boas condições do tempo e à Virgem Maria, que lhes
endireitou o caminho para ali chegarem. Mesmo assim, sempre alerta, sabiam que
tudo seria mais seguro só depois de passar o cabo de São Vicente, zona de
turbulência marinha quando as condições eram desfavoráveis, mas também por
ultrapassarem os mares onde a pirataria
magrebina e genovesa faziam as suas presas. Tirando isso, quando passassem
por Sines fariam proa ao estuário do rio Sado , para não se afastarem muito da
costa e poderem contornar o cabo Espichel muito próximo da margem, iludindo as
dificuldades criadas pelo vento de noroeste, dominante na costa oeste
portuguesa na maior parte do tempo.
Não era só por isso que queriam aproximar-se das escarpas do cabo.
Olhando de baixo para cima, do mar para os píncaros retalhados das rochas,
podiam ver o sítio de oração no alto da falésia de Nossa Senhora do Cabo,
ou Mua, como os autóctones
gostavam mais de lhe chamar. Era ali a fronteira espiritual para agradecer os
bons ventos da viagem, posto que depois as dificuldades para chegar a Lisboa já
não eram nenhumas. O piloto, executando com autoridade a arte de marear que conhecia
desde mancebo, governava o barco seguro de que o encargo que tomou não tardaria
a estar concluído.
Na nave seguia um certo fidalgo, pouco sabedor dos mistérios do mar,
mas que mandava de voz grossa e costas quentes:
- Só visto, pensou o piloto, já tenho navegado em muitos navios, mas nunca vi capitão que falasse tão de barriga cheia como este.
O piloto não tinha nem nunca teve qualquer intenção de se opor às
ordens, fosse o que fosse que o outro exigisse, mas também, verdade se diga, o
homem apenas lhe pediu que a viagem tivesse o seu fim em Lisboa quando o Sol já
estivesse há muito desaparecido e a noite fosse tão alta que da margem se não
vissem nem sombras: - Recomendo-te. Mais do que isso, exijo dos teus
conhecimentos a competência para fundeares em Lisboa com a noite caída, tão
escura quanto a Lua a fizer, ordens simples e indiscutíveis do verdadeiro
comandante do navio. Com o tempo que fazia e todo o tempo do mundo, o piloto não
teria qualquer problema em cumprir o que lhe fora ordenado, e mesmo o avanço
que levava até ajudava, porque logo que ultrapassasse o Espichel podia
perfeitamente fundear na larga baía do Tejo, bem longe dos habituais olheiros
do mar à vista.
Assim se fez. Na noite caída, quando a primeira hora do dia não faz
diferença da última do dia anterior, a caravela lançou ferros, sigilosa, a uma
distância de trinta braças da praia, e aí se quedou misteriosa, quase
invisível, numa certa noite de Junho do ano de 1472. Ao entrar na barra do Tejo, o navio foi surpreendido por uma neblina
persistente, qualquer coisa que arrancava ao mar fumos opacos, propícios à
obediência dos silêncios e à fácil construção de fantasias. Na noite invisível
não se via vivalma na margem do lado do Restelo, nem dela se avistava o navio,
de luzes apagadas à chegada, num vislumbre de reserva que ordens superiores determinaram.
Contrariamente ao bulício que durante o dia animava aquela zona do
Tejo, percorrida por gente sempre de atalaia no horizonte, naquela hora, o mais
profundo sossego esbatia-se na densidade do nevoeiro e nem o manso marulhar das
ondas chegava para impor os habituais sons da água a rebentar na areia. Poucas
pessoas viviam na zona onde as caravelas se despediam. Naquele tempo, a praia
do Restelo distava de Lisboa huma legoa
bem medida, mais longe nessa altura do que os três mil passos que Damião
de Góis dizia serem precisos para chegar, na primeira metade do século XVI,
até à primeira extremidade de Lisboa».
In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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