domingo, 19 de maio de 2013

Clarice Lispector e Vergílio Ferreira. A existência problematizada. Evely Vânia Libanori. «O tempo cronológico pelo qual o indivíduo coordena as actividades diárias, em ambos os romances, dá vez às sensações subjectivas (…). É na própria acção que o homem constrói um perfil e se expõe às pessoas. É necessário partir das coisas para entender o ser»

jdact

Introdução
«A obra da escritora brasileira Clarice Lispector (1925-1977) e a produção literária do escritor português Vergílio Ferreira (1916-1996), iniciada a partir da publicação do romance Mudança, em 1969, apresentam semelhanças no que diz respeito tanto à exposição dos temas quanto ao processo de construção textual. As obras desses escritores são marcadas pela análise introspectiva, por isso prevalecem a constatação sobre a vida em curso, o sentimento de solidão existencial e o questionamento sobre a morte. O presente artigo consiste na exposição da trajetória existencial de Lóri em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Lispector, e Alberto Soares em Aparição, de Vergílio Ferreira. Para tanto, nosso suporte teórico principal será o tratado filosófico Ser e tempo, de Martin Heidegger. Segundo Heidegger, só é possível entender a natureza humana em seu incessante movimento de interacção consigo mesma, com outras pessoas e com os objectos ao seu redor. Assim sendo, é necessário delinear a identidade do homem que rompe as vinculações fáticas com os objectos e seres ao redor e se vê como o fundador de si e do mundo.
Tal exposição permitirá a investigação da própria natureza do ser em suas relações consigo e com o outro, com o espaço à sua volta e com a morte. Nesses romances, as personagens principais são indivíduos que se vêm na difícil condição de construtores de si mesmos. Trata-se de personagens que transcendem as circunstâncias mundanais fora de si e olham para suas próprias possibilidades ontológicas; por isso, encontram-se eminentemente vigilantes e presentes ao mundo. Para essas personagens, a realidade imediata interessa à medida que provoca reflexões na consciência individual, pois só importam os seres e objectos relacionados com o destino humano. Assim, os cenários externos não se constituem apenas o lugar das acções humanas, mas o ambiente que reflecte a agitação interna do homem que se sente existencialmente perdido e não vê, no mundo ao redor, um espaço onde possa aplacar o tormento. O tempo cronológico pelo qual o indivíduo coordena suas actividades diárias, em ambos os romances, dá vez às sensações subjectivas que não coincidem com os padrões de medição cronológica. Uma vez que a marcação temporal do processo fabular não pode mais ser imposta sobre o amorfo da vida, é necessário delinear a identidade do homem que rompe as vinculações fáticas com os objectos e seres ao redor e se vê como o fundador de si e do mundo.
É na própria acção que o homem constrói um perfil e se expõe às pessoas. Portanto, é necessário partir das coisas como se apresentam para entender o ser. Na verdade, o ser não é passível de definição e também não se deixa determinar em seu sentido por outra coisa, nem como outra coisa. A sucessão temporal significa o incessante devenir em que o ser se encontra e, por isso, não se deixa apanhar em um estado definitivo. A definição do ser revela-se fugidia também porque o ser dos entes não pode constituir-se por outro ente.
No entanto, Heidegger esclarece que a impossibilidade de se definir o ser não dispensa a questão de seu sentido, ao contrário, justamente por isso a exige. A impossibilidade de definição do ser implica o movimento contínuo de dar forma e sentido às coisas e impõe a necessidade de flagrar o ser como acto e não como coisa formada. As personagens principais de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Lispector, e Aparição, de Ferreira, rompem a crosta daquilo que, em sentido lato, pode-se denominar hábitos sociais, ou seja, um conjunto de formas habituais de comportamento e de compreensão da existência. De facto, em grande medida, o homem recebe a vida feita, pois o eu social é um princípio anónimo e objectivo, uma estrutura à qual o indivíduo deve se adequar para inserção em determinado grupo. A consciência de existir é rara.
A massa dos homens comuns concentra-se nos objectos externos e posições sociais para, assim, condicionar sua felicidade. Na vida quotidiana, as pessoas esquivam-se de reflectir acerca da própria condição de ser-no-mundo, a fim de se concentrar na existência das coisas, o que implica a cristalização do ser num contorno existencial definido. No entanto, num sentido ontológico, o homem é a proposição de suas escolhas e tudo quanto ofusque o sentido dessa lei fundamental resulta no falseamento e na ocultação do ser. Uma vez que a liberdade é parte constituinte da existência humana, o homem não pode ter um ser fixo e terminado, pois, como afirma Heidegger, o ser não pode ser determinado, acrescentando-lhe um ente.. Não existe um modelo de homem, pois o ser é um projecto sempre incompleto de suas possibilidades.
Independentemente de suas acções e de sua idade, o homem morrerá inacabado porque jamais poderá transformar-se num ente; somente transcendendo em direção às suas próprias possibilidades é que o homem desperta para aquilo que o rodeia e transforma a sua circunstância em matéria de seu destino. O envolvimento amoroso presente nos dois romances constitui uma leve trama de acção romanesca que é secundária como interesse. A experiência amorosa de Lóri e Ulisses, no romance de Lispector, bem como os desentendimentos afectivos entre Alberto e Sofia, no romance de Ferreira, serve como fio condutor das reflexões das personagens acerca de si, do outro, da dificuldade de comunicação. Os autores levam a língua portuguesa a domínios pouco explorados. A minúcia na descrição de múltiplas experiências psíquicas é expressa por meio de comparações inusitadas, sinestesias, paradoxos». Wikipédia. In Evely Vânia Libanori, Clarice Lispector e Vergílio Ferreira, A existência problematizada, Acta Scientiarum. Language and Culture, volume 32, Universidade Estadual de Maringá, 2010.

Cortesia de Wikipédia/JDACT