Introdução
«A obra da escritora
brasileira Clarice Lispector (1925-1977)
e a produção literária do escritor português Vergílio Ferreira (1916-1996), iniciada a partir da
publicação do romance Mudança, em 1969,
apresentam semelhanças no que diz respeito tanto à exposição dos temas quanto
ao processo de construção textual. As obras desses escritores são marcadas pela
análise introspectiva, por isso prevalecem a constatação sobre a vida em curso,
o sentimento de solidão existencial e o questionamento sobre a morte. O
presente artigo consiste na exposição da trajetória existencial de Lóri em Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Lispector, e Alberto Soares em Aparição, de Vergílio Ferreira. Para tanto, nosso suporte
teórico principal será o tratado filosófico Ser e tempo, de Martin
Heidegger. Segundo Heidegger, só é possível entender a natureza
humana em seu incessante movimento de interacção consigo mesma, com outras
pessoas e com os objectos ao seu redor. Assim sendo, é necessário delinear a
identidade do homem que rompe as vinculações fáticas com os objectos e seres ao
redor e se vê como o fundador de si e do mundo.
Tal exposição permitirá
a investigação da própria natureza do ser em suas relações consigo e com o
outro, com o espaço à sua volta e com a morte. Nesses romances, as personagens
principais são indivíduos que se vêm na difícil condição de construtores de si
mesmos. Trata-se de personagens que transcendem as circunstâncias mundanais
fora de si e olham para suas próprias possibilidades ontológicas; por isso,
encontram-se eminentemente vigilantes e presentes ao mundo. Para essas personagens,
a realidade imediata interessa à medida que provoca reflexões na consciência
individual, pois só importam os seres e objectos relacionados com o destino
humano. Assim, os cenários externos não se constituem apenas o lugar das acções
humanas, mas o ambiente que reflecte a agitação interna do homem que se sente
existencialmente perdido e não vê, no mundo ao redor, um espaço onde possa
aplacar o tormento. O tempo cronológico pelo qual o indivíduo coordena suas actividades
diárias, em ambos os romances, dá vez às sensações subjectivas que não
coincidem com os padrões de medição cronológica. Uma vez que a marcação
temporal do processo fabular não pode mais ser imposta sobre o amorfo da vida,
é necessário delinear a identidade do homem que rompe as vinculações fáticas
com os objectos e seres ao redor e se vê como o fundador de si e do mundo.
É na própria acção que o
homem constrói um perfil e se expõe às pessoas. Portanto, é necessário partir
das coisas como se apresentam para entender o ser. Na verdade, o ser
não é passível de definição e também não se deixa determinar em seu sentido por
outra coisa, nem como outra coisa. A sucessão temporal significa o incessante devenir em que o ser se encontra e, por
isso, não se deixa apanhar em um estado definitivo. A definição do ser revela-se fugidia também porque o ser dos entes não pode constituir-se por
outro ente.
No entanto, Heidegger
esclarece que a impossibilidade de se
definir o ser não dispensa a questão
de seu sentido, ao contrário, justamente por isso a exige. A
impossibilidade de definição do ser implica o movimento contínuo de dar
forma e sentido às coisas e impõe a necessidade de flagrar o ser
como acto e não como coisa formada. As
personagens principais de Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres,
de Lispector, e Aparição, de Ferreira,
rompem a crosta daquilo que, em sentido lato, pode-se denominar hábitos sociais, ou seja, um conjunto de
formas habituais de comportamento e de compreensão da existência. De facto, em
grande medida, o homem recebe a vida feita, pois o eu social é um princípio anónimo
e objectivo, uma estrutura à qual o indivíduo deve se adequar para inserção em determinado
grupo. A consciência de existir é rara.
A massa dos homens
comuns concentra-se nos objectos externos e posições sociais para, assim,
condicionar sua felicidade. Na vida quotidiana, as pessoas esquivam-se de reflectir
acerca da própria condição de ser-no-mundo, a fim de se concentrar na
existência das coisas, o que implica a cristalização do ser num contorno
existencial definido. No entanto, num sentido ontológico, o homem é a
proposição de suas escolhas e tudo quanto ofusque o sentido dessa lei
fundamental resulta no falseamento e na ocultação do ser. Uma vez que a liberdade
é parte constituinte da existência humana, o homem não pode ter um ser
fixo e terminado, pois, como afirma Heidegger, o ser não pode ser determinado,
acrescentando-lhe um ente.. Não existe um modelo de homem, pois o ser
é um projecto sempre incompleto de suas possibilidades.
Independentemente de suas acções e de sua idade, o homem morrerá inacabado
porque jamais poderá transformar-se num ente; somente transcendendo em direção
às suas próprias possibilidades é que o homem desperta para aquilo que o rodeia
e transforma a sua circunstância em matéria de seu destino. O envolvimento
amoroso presente nos dois romances constitui uma leve trama de acção romanesca
que é secundária como interesse. A experiência amorosa de Lóri e Ulisses,
no romance de Lispector, bem como os
desentendimentos afectivos entre Alberto e Sofia, no romance de Ferreira, serve como fio condutor das
reflexões das personagens acerca de si, do outro, da dificuldade de comunicação.
Os autores levam a língua portuguesa a domínios pouco explorados. A minúcia na descrição
de múltiplas experiências psíquicas é expressa por meio de comparações
inusitadas, sinestesias, paradoxos». Wikipédia. In Evely Vânia Libanori, Clarice Lispector e Vergílio Ferreira, A
existência problematizada, Acta Scientiarum. Language and Culture, volume 32, Universidade Estadual de Maringá,
2010.
Cortesia de
Wikipédia/JDACT