quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Sangue. O Vento. A Guerra. Contos. Gonzalo T. Ballester. «… num 13 de Junho de bastantes anos antes, tinha nascido um poeta de quem eu acabaria por ser devoto, e que, a partir do momento em que conheci a data do seu nascimento, me senti interessado pela coincidência, (…) e prescindiu do seu habitual recurso à ironia»

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O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«(…) Fechado, pois, em mim próprio, e sem mais recursos que a memória, posso escrever aqui uma dúzia de nomes, talvez nem cheguem à dúzia, e de alguns deles não sei nada, absolutamente nada, nem como eram as suas caras, nem o que fizeram, nem por que são meus avós ou bisavós: casais nascidos e crescidos que um dia se conheceram, que acaso se amaram, foram felizes ou desgraçados e deles provieram inimaginavelmente Gonzalo e Ángela, com as suas histórias também às costas, com o seu destino, de que em parre fui testemunha, mas que é deles, não meu; como não ordenaram em nenhum testamento que o contasse, é sagrado, testemunho de silêncio: só do que é meu sou dono, e ainda assim apenas em parte, a intimidade pessoal, aquilo que fiz sozinho, o que só a mim diz respeito, mas tudo o que seja partilhado, vida dos outros, tão-pouco é meu, tão-pouco posso contá-lo. Sempre me causaram certo mal-estar moral aqueles que propalam as suas relações, mais ou menos em pormenor, com as mulheres, e lhes põem os seus nomes, ou as descrevem minuciosamente, para que não restem dúvidas.
Há experiências que convém selar depois de as termos enterrado, mesmo que sejam da melhor matéria para a literatura. De meus pais recebi aquilo que sou, o bom e o mau, e se o meu cérebro não pesa mais cem gramas, se as minhas palavras não deslumbram, se a minha obra não causa espanto, não foi culpa deles. Deram-me o que tinham, o que lhes haviam dado a eles. Seja como for, poderia classificar as minhas qualidades em paternas e maternas, como os apelidos, mas para quê, se se juntaram em mim e me constituem? Deploro vivamente, por exemplo, não ter recebido deles um grande talento lírico, não por inveja que me causem os maiores do ramo, mas pelo gosto que dá, e o bem que soa, que nos chamem poeta. A minha mãe não teria desgostado, mas vejo-me na obrigação moral de acrescentar que a minha mãe se sentiu muito satisfeita comigo, apesar das minhas deficiências, e o meu pai também, embora nenhum deles tenha atingido esse momento da vida em que, durante alguns dias, um nome passa insistente pelas bocas de todos, bocas que depois se calam, porque esquecem. Morreram com alguma esperança, os meus pais; antes assim, do que desiludidos
Gostaria de imaginar aquela manhã de Santo António em que Gonzalo e Ángela decidiram ir de romaria. A ermida do santo ficava longe, era preciso dar a volta a um cor.. da ria, e Ángela estava já fora de contas; mas falavam, as entendidas, ela era estreante, da conveniência de caminhar. Pois olha, que melhor do que ir até Santo António da Cabana e descansar à sombra dos castanheiros, sobre a erva do souto, aroma de frutos e alvoroço de festa em redor! Um caminho estreito; de um lado, o monte, do outro, o rio. E, quanto a gente, todos os componentes de um quadro de costumes, sem que faltassem a gaita e o tamboril, pois ainda que o relógio já não o marcasse, corria o século XIX. Tinha passado, havia pouco, o cometa Halley: terá influído, o seu eflúvio, no corpo ou na alma do rapaz esperado? Sabe-se lá o que há de certo nas histórias dos astros e das suas cabeleiras! Gonzalo é bastante jacobino, o que lhe ocorre é a morte do conde Leão Tolstoi, um escritor russo de quem se fala muito, de quem se lê alguma coisa. No ano em que nasceste morreu Tolstoi, disse-me muitas vezes, e não sei se o dizia como querendo dar a entender: Aí tens um vazio que podias preencher. Mas não, não creio que alguma vez lhe tenha passado pela cabeça, a mim sim, a posteriori. Ter-me-ia preferido almirante, o meu pai.
O que ele não sabia, o que não poderia, pois, recordar, era que num dia também de Santo António, 13 de Junho como aquele, numa casa de Lisboa, alta, de cujas janelas se vislumbrava o estuário e, um pouco mais além, o mar; num 13 de Junho de bastantes anos antes, tinha nascido um poeta de quem eu acabaria por ser devoto, e que, a partir do momento em que conheci a data do seu nascimento, me senti interessado pela coincidência, me senti até inquieto, e a minha imaginação rompeu os freios e prescindiu do seu habitual recurso à ironia. Que rebuliço não se teria armado, se eu fosse adepto da astrologia, cliente de adivinhos, destro no uso de tarotes e outras cartas! Tive a sorte de me limitar a uma investigação curiosa da vida do poeta e à convicção subsequente de que, salvo em certas preferências literárias, e em que eu teria assinado de bom grado a maior parte dos seus versos, não nos parecíamos em nada». In Gonzalo Torrente Ballester, O Sangue, O Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.

Cortesia de Caminho/JDACT