quarta-feira, 22 de maio de 2013

Entre a República e a Acracia. O Pensamento e a Acção de Emílio Costa (1897-1914). António Ventura. «... foi uma das mais destacadas figuras do movimento socialista e libertário português, tradicionalmente pobre quanto a produções autónomas e inovadoras. Assistiu aos grandes debates e testemunhou as transformações profundas operadas em Portugal e no mundo»

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Porquê consagrar quatro ou cinco anos da nossa vida a um determinado personagem, em vez de outro? Precisamente porque ele agrada-me, interessa-me, diverte-me, comove-me, pelos seus méritos, pelos seus triunfos, pelas suas misérias, pelas suas grandezas e, até, pelos seus defeitos e, por vezes, pelos seus vícios. In Jean Orieux, A Arte do Biógrafo, História e Nova História, Lisboa, 1989.

Introdução
«A frase - Ensinar, se soubesse! Sintetiza, em apenas três palavras, toda a vida e obra de Emílio Martins Costa, autor cujo pensamento e acção nos propomos estudar aqui parcialmente. Estamos perante uma figura que, vivendo entre 1877 e 1952, foi coeva das grandes transformações que marcaram a história de Portugal nas últimas décadas de oitocentos e nos primeiros trinta anos do século XX. Participou na revitalização do Partido Republicano a partir de 1897 e na agitação académica que se desenvolveu em Lisboa, com intensidade desigual, entre aquele ano e 1901; bebeu avidamente as ideias novas então em voga, ideias radicais que propunham drásticas transformações da sociedade, ideias maximalistas, aliciantes para uma juventude generosa, sempre disposta a destruir as injustiças ancestrais num ápice e a construir um mundo novo, hipoteticamente mais equilibrado, no momento seguinte.
O caminho que Emílio Costa escolheu e trilhou foi o da independência assumida até às últimas consequências, rejeitando tutelas e preconceitos de qualquer tipo que lhe condicionassem o pensamento e lhe dirigissem a acção. Essa assunção da liberdade como valor supremo, essencial e norteador, levá-lo-á a uma constante revisão de posições, frequentemente geradora de conflitos e de polémicas públicas, por vezes de grande dureza, as quais lhe acarretarão incompreensões e inimizades duradouras. Alguns momentos fulcrais da história do Portugal contemporâneo terão a sua intervenção empenhada e criadora. E o caso do grande debate sobre a questão do regime - Monarquia ou República - travado com particular ênfase a partir do início do século XX.
Sendo conscientemente libertário numa clara opção intelectual e não emocional, ao contrário de tantos outros, Emílio Costa não se esquivou a defender publicamente, numa primeira fase, a colaboração com os republicanos. Foi um dos raros teorizadores, sólido e coerente, do anarquismo intervencionista em Portugal, embora viesse depois a rever esta postura, remetendo-se para um criticismo que, no entanto, estava longe da neutralidade quietista. De facto, contrariando um esteio fundamental do pensamento libertário desde os tempos do grande debate entre Karl Marx e Miguel Bakunine no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores, o apoliticismo, Emílio Costa não se furtava a pontuais tomadas de posição implicitamente políticas, que considerava legítimas e justificáveis em face dos fins a atingir. Distinguia claramente a política, enquanto atitude inerente à sociabilidade humana, e os partidos, em cuja teia nunca se deixou enredar e cuja actividade sempre julgou com desconfiança. Ele próprio confessará, em jeito de balanço, que nunca pertenci ao que se chama um partido político (...) e também devo dizer que nunca votei em eleições oficiais. Nunca contribuí para alguém ser deputado, vereador ou membro duma junta de freguesia. Não reduzia a sua actividade ao campo legal; bem pelo contrário, defendeu a necessidade de outras formas de organização e de acção, de carácter ilegal e revolucionário.
Ao mesmo tempo, traduziu para português as primeiras obras teóricas sobre o sindicalismo-revolucionário francês, inspirado na Carta de Amiens, trabalhos que datam de 1909, originalmente publicados pela Librairie des Sciences Politiques & Sociales na Bibliothèque du Mouvement Socialiste, depois Bibliothèque du Mouvement Prolétarien. Embora dedicasse especial atenção às questões então muito em voga, como o militarismo, a acção directa ou a organização da sociedade futura, não subestimava aquilo que designava por pequenas conquistas, isto é, tudo o que pudesse contribuir para o progresso e para o avanço da humanidade, passo a passo, em direcção a uma sociedade mais justa e mais feliz.
Não era um homem amarrado a ideias preconcebidas, por mais luminosas e salvadoras que pudessem parecer. Talvez seja essa a razão fundamental que explica uma certa resistência em se confundir no colectivo, não obstante ter participado com entusiasmo em grupos de propaganda ou noutras agremiações de diverso tipo. Ele, que estava longe e bem longe de Stirner, cujo pensamento criticou com veemência, e que nunca foi, por isso, um anarquista individualista, preferia actuar a solo em vez de se diluir no anonimato impessoal de um coro, emergindo aqui e ali, nos seus escritos, perspectivas implicitamente elitistas. Mesmo quando integrado em colectivos, a sua voz sobressaía pela qualidade do discurso e pela inovação das propostas». In António Ventura, Entre a República e a Acracia. O Pensamento e a Acção de Emílio Costa (1897-1914), Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-94-0.

Cortesia de Colibri/JDACT