sábado, 18 de maio de 2013

Crónica. Saudade da Literatura. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «A expedição aos ossos foi, até agora, a única coisa de notório parlamentarmente feita pela obra de Fernando Pessoa, cuja perplexa alma, disputada pelos críticos, continua, mais heterónimo menos heterónimo…»

jdact

Pessoa Comemorado até aos Ossos
«O subsolo nacional, para usar a preciosa expressão do coronel Jaime Neves, anda num desassossego. A semana passada foram desenterrados os ossos de Gungunhana, para serem mandados para Moçambique; esta semana vão mudar de sítio os de Fernando Pessoa. Com a indústria pessoana em frenética actividade no ano do cinquentenário da sua morte, a multiplicação das teses, dos artigos, das conferências, das homenagens, dos gadgets de toda a espécie, o Parlamento, pela voz troante de Manuel Alegre, parlamentou que havia que pôr os ossos do poeta fora do alcance dos coleccionadores de recordações e do currículo dos universitários. E o Governo, com o por assim dizer cuidado que sempre põe nas coisas culturais, sobretudo quando se treta de ossos, mandou que se recolhessem e se guardassem nos Jerónimos.
O afã fúnebre do chamado Poder já tinha notabilizado as recentes comemorações do 10 de Junho. Na altura, o presidente da República condecorou, perante todas as forças vivas da Nação alinhadas no Porto, um silencioso cortejo de mortos que, não tendo sido contemplados com tamanha honra em vida, só hão-de ter praticado agora, presume-se, os feitos do outro mundo que lhes valeram as comendas. No Portugal europeu logrou-se finalmente inverter a antiquada máxima pombalina, e desenterram-se os mortos e descuidam-se os vivos.
Só que o caso pessoano levanta inesperadas dificuldades a esta política mortuária, e os coveiros literários encarregados do serviço pelo Governo vão ver-se e achar-se para destrinçar, no amontoado de omoplatas, esfenóides, escafóides, rádios, metacarpos, falanges, falanginhas, calcâneos, trapezóides, etc., os do próprio Pessoa-ele-próprio, os de Álvaro de Campos, os de Alberto Caeiro, os de Ricardo Reis, os de Bernardo Soares e os de todas as outras pessoas de que, como se sabe, a pessoa pessoana era feita e é agora desfeita. Mesmo o Sr fulano de tal…, mais-que-perfeito conhecedor dos labirintos da alma do poeta, não consegue, parece, entender-se com os do esqueleto. Ao que se sabe, de Ricardo Reis, por exemplo, apenas se encontrou ainda um ísquion e um exemplar de Horácio
E, todavia, o ministro dos Cemitérios quer, a todo o custo, evitar cometer o erro que o antepassado seu homólogo cometeu com os ossos de Camões, denunciado pelo próprio Camões no poema de Jorge de Sena, e insiste em ter heterónimos e ortónimo em urnas separadas, para o caso de futuros cinquentenários e centenários separados, já que, como é do domínio público, nasceram todos eles, heterónimos e ortónimo, em datas diferentes...
A expedição aos ossos foi, até agora, a única coisa de notório parlamentarmente feita pela obra de Fernando Pessoa, cuja perplexa alma, disputada pelos críticos, continua, mais heterónimo menos heterónimo, no mais anónimo desconhecimento geral, para além do tudo vale a pena e da presumível declaração do Martinho da Arcada e do bagaço como monumentos nacionais.
A Comissão das Comemorações do Cinquentenário, criada no âmbito do Ministério da Cultura, anunciou em tempos a peregrina ideia de promover edições populares da poesia e da prosa de Pessoa, bem como o seu conhecimento em línguas menos portuguesas que a nossa. Manuel Alegre não foi, naturalmente, consultado sobre o assunto, mas não é crível que aceite que o Governo abra mão dos dinheiros da Operação Ossos, para tornar possível a iniciativa. O mais provável, pois, é que continuemos eternamente a ter a edição da Obra Completa a vários contos de réis por volume, e feita no Brasil, e os ossos de borla nos Jerónimos para português ver...
In JN, 22 /06 / 1985

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio & Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT