Nota Prévia
«Todo texto com tradição, tomada a palavra no sentido que a Crítica
Textual lhe empresta, tende a apresentar, nas reproduções que dele são
feitas, um maior ou menor número de alterações que vão, desde os erros cometidos
por distração de digitadores até as correções
bem intencionadas de revisores ou copidesques.
Por isso, é necessário que se proceda ao estabelecimento desse texto,
procurando, no confronto com as edições publicadas em vida do autor,
restituir-lhe sua fidedignidade e genuinidade. Clarice Lispector escrevia e reescrevia seus textos, mas não se
preocupava em guardar manuscritos e originais, como se pode verificar no
arquivo que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, cujo inventário
foi organizado por Eliane Vasconcellos, e publicado em 1994. De toda sua obra ficcional, só
restou um original datilografado: o de Água
viva, a propósito do qual fala em carta a Olga Borelli,
mostrando como trabalhava exaustivamente o texto:
- … Não pude te esperar: estava morrendo de cansaço, porque estou trabalhando ininterruptamente desde as cinco da manhã. Infelizmente eu é que tenho que fazer a cópia de Atrás do Pensamento, sempre fiz a última cópia dos meus livros anteriores porque cada vez que copio vou modificando, acrescentando, mexendo neles, enfim.
No entanto, depois de encaminhar o texto à editora, Clarice não se interessava mais por
ele, conforme declara em entrevista concedida a Affonso Romano de Sant'Anna
e Marina Colasanti, para o Museu da Imagem e do Som, em 20 de outubro de
1976:
- Affonso - Você tem os seus textos escritos na cabeça. E uma vez você me disse uma coisa impressionante: você nunca relê um texto seu.
- Clarice - Não. Enjoo. Quando é publicado, é como livro morto. Não quero mais saber dele. E quando eu leio, estranho, acho ruim. Aí não leio, ora!
Miss Algrave
Ela era sujeita a julgamento. Por isso não contou nada a
ninguém. Se contasse, não acreditariam porque não acreditavam na realidade. Mas
ela, que morava em Londres, onde os fantasmas existem nos becos escuros, sabia
da verdade. Seu dia, sexta-feira, fora igual aos outros. Só aconteceu sábado de
noite. Mas na sexta fez tudo igual como sempre. Embora a atormentasse uma
lembrança horrível: quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de
marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam tudo
para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era
culpada, ele também o era. Solteira, é claro, virgem, é claro. Morava sozinha
numa cobertura em Soho. Nesse dia tinha feito suas compras de comida:
legumes e frutas. Porque comer carne ela considerava pecado. Quando passava
pelo Picadilly Circle e via as mulheres esperando homens nas esquinas,
só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era demais para se suportar. E
aquela estátua de Eros, ali, indecente. Foi depois do almoço ao
trabalho: era dactilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e
tratava-a felizmente com respeito, chamando-a de Miss Algrave. Seu
primeiro nome era Ruth. E descendia de irlandeses. Era ruiva, usava os
cabelos enrolados na nuca em coque severo. Tinha muitas sardas e pele tão clara
e fina que parecia uma seda branca. Os cílios também eram ruivos. Era
uma mulher bonita. Orgulhava-se muito de seu físico: cheia de corpo e
alta. Mas nunca ninguém havia tocado nos seus seios.
Costumava jantar num restaurante barato em Soho mesmo.
Comia macarrão com molho de tomate. E nunca entrara num pub: nauseava-a o cheiro de álcool, quando passava
por um. Sentia-se ofendida pela humanidade. Cultivava gerânios vermelhos que
eram uma glória na Primavera. Seu pai fora pastor protestante e a mãe ainda
morava em Dublin com o filho casado. Seu irmão era casado com uma verdadeira
cadela chamada Tootzi. De vez em
quando Miss Algrave escrevia uma carta de protesto para o Time. E eles publicavam.
Via com muito gosto o seu nome: sincerely Ruth Algrave.
Tomava banho só uma vez por semana, no sábado. Para não ver o
seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã. No dia em que aconteceu
era sábado e não tinha portanto trabalho. Acordou muito cedo e tomou chá de
jasmim. Depois rezou. Depois saiu para tomar ar. Perto do Savoy Hotel
quase foi atropelada. Se isso acontecesse e ela morresse teria sido horrível
porque nada lhe aconteceria de noite. Foi ao ensaio do canto coral. Tinha voz
maviosa. Sim, era uma pessoa privilegiada. Depois foi almoçar e permitiu-se
comer camarão: estava tão bom que até parecia pecado. Então dirigiu-se ao Hyde
Park e sentou-se na grama. Levara uma Bíblia para ler. Mas, que Deus a
perdoasse, o sol estava tão guerrilheiro, tão bom, tão quente, que não leu
nada, ficou só sentada no chão sem coragem de se deitar. Procurou não olhar os
casais que se beijavam e se acariciavam sem a menor vergonha.
Depois foi para casa, regou as begônias e tomou banho. Então
visitou Mrs. Cabot que tinha noventa e sete anos. Levou-lhe um pedaço de
bolo com passas e tomaram chá. Miss Algrave sentia-se muito feliz,
embora… Bem, embora. Às sete horas
voltou para casa. Nada tinha a fazer. Então tricotou uma suéter para o Inverno. De cor esplendorosa: amarela como o sol. Antes de dormir tomou mais chá de jasmim com
biscoitos, escovou os dentes, mudou de roupa e meteu-se na cama. Suas cortinas
de gaze ela mesma fizera e pendurara. Era Maio. As cortinas se balançavam
à brisa dessa noite tão singular. Singular
por quê? Não sabia». In Clarice Lispector, A Via Crucis do Corpo,
Rocco, Rio de Janeiro, 1998, ISBN 85-325-0950-9.
Cortesia de Rocco/JDACT