Com
Camões na encruzilhada
«(…) Malogradas as
prometidas negociações, de Arzila foi então o cativo levado para Fez, ainda por
escrito dando contas das ásperas mudanças
que em seu cativeiro já começava de
receber, pedindo-lhe, ao irmão, rei Duarte, sua redenção com palavras assim de
razão e piedosas (…). Morre o monarca, termina Rui de Pina esta
crónica e, na seguinte, de D. Afonso
V, depois de vários capítulos que abarcam problemas da regência e do reino
em geral, incluindo referências à questão de Tânger, no LXXXIII, põe-nos a par
da morte do infante Fernando, em 1443,
de quem afirma que certo de crer he pyadosamente
que morreo santamente, e com esperança de ser Santo e bem aventurado,
tendo Deus, por ele, feito evidentes
millagres; sofreu com a aspereza
do trato e máo cativeiro,
servindo em ofycios baxos e vys, acabando seus dias numa mazmorra
e prysam muy escura; esteve o corpo, num ataúde pendurado por cadêas, sobre uma porta da cidade de Fez
até que, em 1473 vieram os seus
restos por convençã para Portugal, onde jaz no Mosteiro da Batalha,
prosseguindo a senda milagrosa anteriormente iniciada.
Fácil de concluir, sem desdouro para ninguém. Predisposição para o
martírio já esboçada na mais provável
fonte de Camões? Não parece, antes tentativas várias para a redenção. Entre
as virtudes, se não um rol de méritos iniciais, pelo menos, a paciente
resignação, talvez, a partir do facto
consumado do perpétuo cativeiro. Milagres?
Deles não fala o épico, mas a Rui
de Pina parecem não ter escapado e deles se voltará a falar, com eles
teremos de nos contentar, por enquanto, como indicadores da santidade que cedo
começa a pairar como apanágio do Infante, apesar de muito não termos concluído
sobre o seu intento de cruzada, nem sobre visões e confortos celestes termos
tido qualquer conhecimento. Para à verdade não faltarmos, acrescentemos ainda
que bem pouco esclarecidos ficamos sobre a dimensão do seu apregoado
patriotismo em posteriores versos que valem por si mesmos.
Historicamente correcta,
essa sim, a vinda da ossada para a Batalha, como seria de esperar. Prossigamos,
porém, lembrando que o cronista oficial não foi o primeiro a passar a escrito
as desventuras do príncipe cativo, uma biografia sua nos fora já legada
por frei João Álvares (1406?-1490?) que, em Fez, acompanhou
o Infante durante onze anos; libertado em 1448,
voltou em 1450 ao norte de África e
conseguiu trazer as vísceras do infante Fernando, que, com algumas
cumplicidades, havia escondido, seguindo-as, já como inestimáveis relíquias,
até ao Mosteiro da Batalha. Do seu Trautado
da Vida e Feitos do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando conserva-se
um manuscrito na Biblioteca Nacional de Madrid que, editado em 1911 por Mendes dos Remédios,
tem desde 1960 uma mais correcta
versão. De uma edição de 1527,
diferentemente intitulada, corregida e emendada
por Ierónimo Lopez escudeiro
fidalgo da Caza delRey Nosso Senhor apenas nos resta a informação de Barbosa
Machado, mas de uma outra, de 1577,
reuista e reformada ora de nouo pelo
padre frey Hieronymo de Ramos, encontramos exemplares em quatro
bibliotecas, entre as quais a Nacional de Lisboa e fácil nos é consultá-la no
mesmo volume que integra a mais actual edição do manuscrito.
Sem sabermos ao certo
que emendas devemos atribuir a Jerónimo Ramos, uma vez que desconhecemos
o texto de 1527, do cotejo entre o manuscrito
editado e a obra de 1577, fica-nos a
convicção de que poucas alterações foram feitas, embora uma delas nos vá
merecer relativa detença. Trata-se claramente de obra sob encomenda, com
matizes por demais evidentes de narrativa hagiográfica tardo-medieval,
aparecendo-nos a figura do protagonista qual Cristo virtuoso e sofredor, nas
atitudes, nos tormentos, na dádiva de si.
Depois dum capítulo
introdutório que com o autor tem a ver, diz-se-nos do miraculoso nascimento do Iffante Dom Fernando, e
inventariam-se, com cuidada mas sóbria concretização, as suas virtudes:
- a religiosidade,
- a humildade,
- a caridade com o próximo,
- a honestidade,
- a castidade e algumas outras, tanto teologais como morais.
Com alguma brevidade são
relatados os factos que levaram ao cativeiro, sem lugar para demonstrações de
alguma ambição por parte de Fernando, e será neste que frei João
Álvares e o editor de 1577 propositadamente
se demorarão. Os vexames entre Tânger e Arzila, a crueldade no trajecto entre
Arzila e Fez, a vida na masmorra, os ferros, a solidão final,
os trabalhos em estrebarias e ruas serão impressivamente
desdobrados, a par das traições dos mouros aqueles
menistros de Satanas e dos avanços e recuos nas sempre goradas diligências
para o resgate. Milagres também os há e não são para desprezar. Acompanhando frei
Jerónimo Ramos (já que ao manuscrito
faltam alguns fólios), sabemos de estranhas claridades, da conversão de um
renegado, de curas, enquanto o corpo se encontrava exposto nos muros de Fez;
sabemos de uma Beatriz Álvares que confirmou uma espécie de multiplicação
dos pães (de trigo), em época de carência, e de mais curas, quando
as vísceras já tinham sido trazidas para Portugal». In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.
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