«(…) Esta separação parece que seria pouco relevante para as realezas
da Alta Idade Média, nomeadamente para a dos francos na época meroúngia,
ou para a dos visigodos hispânicos. De acordo com os textos mais antigos que
conhecemos descrevendo a corte imperial carolíngia, por exemplo, a designação convivas do rei (convivae regis) englobava todos quantos
se juntavam ao monarca, seja porque com ele viviam, seja porque tinham sido
convocados para a corte numa dada ocasião. Assim sendo, parece que esta
designação na Alta Idade Média se usava também no caso de uma
participação meramente temporária na corte, e não apenas para os membros
regulares do séquito ou para aqueles que nele detinham ofícios específicos. O
regime dos ofícios carolíngio incluía alguns funcionários responsáveis pelos
recursos usados no sustento dos convivas
do rei, entre os quais observamos uma divisão entre a administração do
vinho e a dos restantes alimentos, e também a autonomia do ofício ligado aos
cavalos da comitiva regia. O mesmo sucedia no caso da realeza visigótica no
século VII, pois além do comes cubiculariorum, ligado ao cubiculum, ou câmara do rei, as fontes
mencionam um comes scanciarum, ou
escanção, e também um comes stabuli, encarregado
dos cavalos e do seu sustento. A breve menção ao regime visigótico ou
carolíngio serve aqui apenas como útil contraste com o quadro problemático das
cortes mais tardias, ao mesmo tempo chamando a atenção para a existência de cortes
associadas à reprodução e configuração da realeza no período da Alta Idade
Média. Está hoje posta de lado, com efeito, a interpretação outrora
corrente entre os historiadores de que a corte régia apenas emerge com o Renascimento
dos séculos XV e XVI.
Uma procura sistemática de continuidades e influências na longa duração
seria, no entanto, um caminho de parca utilidade para o estudo do caso
português, no qual a corte régia apenas se configura a partir do século XII. As
transformações da instituição monárquica sobrevindas nos séculos centrais da Idade
Média são, em contrapartida, mais relevantes para a nossa análise, e elas
aproximam o reino português dos restantes reinos cristãos peninsulares, em
particular o de Leão e Castela, e o de Aragão. Deixando de
lado, propositadamente, uma obsessiva procura
das origens para a realeza portuguesa, retomemos algumas das conclusões
que a seu tempo propuseram Herculano, Gama Barros, Paulo Mereia
ou Rui Azevedo, relativamente ao quadro dos oficiais que acompanhavam os
primeiros monarcas de Portugal, tal como ele pode ser reconstruído a partir dos
documentos régios que sobreviveram.
Segundo concluíram estes autores, certamente existiu já uma corte condal,
embora modesta. Mas foi a dignidade real reivindicada por Afonso Henriques que se
traduziu por uma organização palatina, que emulava o vizinho leonês e
correspondeu a uma contínua expansão das relações com outras cortes ibéricas e
extrapeninsulares, nomeadamente através dos casamentos do próprio Afonso
Henriques com D. Mafalda de Mouriana, e de Sancho
I com D. Dulce de Aragão. A corte dos primeiros reis de Portugal, de
facto, não demonstra grandes diferenças no quadro dos usos correntes entre os
monarcas ibéricos do século XII. Que ofícios encontramos mencionados na
documentação mais antiga do reino de Portugal que estivessem relacionados com a
administração de alimentos e com o sustento da corte? A enumeração não é
difícil de fazer (a síntese clássica encontra-se em Gama Barros, História da Administração Pública em
Portugal nos XII a XV, 1946), embora a interpretação de uma orgânica de
funções e da hierarquia de ofícios seja controversa, em grande medida pela escassez
de notícias e pela circulação das mesmas personagens no desempenho de vários
desses ofícios durante os governos de Afonso Henriques e Sancho
I. Encontrando-se os ofícios sob a autoridade de um mordomo, que detinha a posição
hierarquicamente dominante do séquito real, verificava-se a separação usual
entre a administração da comida e da bebida, que corresponderia às funções
respectivas do dapifer, comida, e de
personagens como o scancio ou pincerna, bebida, vocábulo este que
teria talvez sabor arcaizante no século XII. A menção de um spensator ciborie regis (servidor que
administrava o cereal do reis) em documentos da década de 1150, juntamente com a existência de vários oficiais denomina dos dapifer, nomeadamente um dapifer regis a par de um dapifer curie servindo na mesma corte,
levou-me a postular a hipótese, em trabalho publicado pela primeira vez em 1995, de que já se verificasse no
século XII em Portugal a separação que veio depois a ser mencionada
expressamente nas leis da centúria seguinte:
- de um lado, estaria o serviço da mesa do rei;
- de outro, a administração dos alimentos da restante corte.
Esta separação, tem grande importância no estudo da comensalidade
cortesã. Uma das primeiras referências a este mecanismo de separação diz
respeito à corte dos primeiros monarcas angevinos em Inglaterra, onde
uma descrição sistemática dos ofícios, de cerca de 1136, enumera um cozinheiro para o rei que exerce o seu ofício em
separado dos cozinheiros da grande
cozinha da corte. A existência de múltiplas personagens servindo como dapifer na corte portuguesa pode estar
relacionada com este traço estrutural observado em outros contextos coevos». In A Mesa
dos Reis de Portugal, Ofícios, Consumos, Cerimónias e Representações, séculos
XIII-XVIII, Coordenação de Ana Isabel Buescu e David Felismino, Apresentação de
Maria Helena Cruz Coelho, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN
978-972-42-4695-6.
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