sábado, 25 de maio de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «… chamando sempre a atenção de El-Rei para as vantagens de estabelecer em terra sua o Santo Oficio. El-Rei ponderava muito pouco a tal respeito e respondia sempre: - “Irra!” Há uma única fé ancestral que é a do zelo dos homens. Eu dou-lhes o tribunal!»

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«(…) Da terceira espécie, há só um e que é um padre e que trazia um sambenito cor de fogo, ostentando o próprio retrato a meio-corpo, à frente, que depois ficou exposto na igreja dos Dominicanos. As provas do seu judaísmo eram as mesmas que as dos outros, apenas foi acrescentado que ele confessara acreditar que por isso, umas vezes cumprira uma, outras vezes cumprira outra. Após o que foi declarado um apóstata, e condenado a ser degredado, a perder todos os seus bens e a ser castigado de acordo com as leis; pelo que, em execução da dita sentença, foi ali degredado e entregue à justiça secular, que o levou para o seu próprio tribunal, onde os juízes lhe perguntaram se queria morrer na Lei de Moisés ou na de Cristo, ao que ele respondeu na de Cristo como sempre vivera. Foi então sentenciado a ser queimado e as suas cinzas lançadas ao rio e que o seu nome se tornasse infamante; a qual sentença foi imediatamente executada; mas, como declarara querer morrer como cristão, foi primeiro garrotado.
O cardeal, que fora ao país vizinho e regressara exultante, extaseado, convertido à Inquisição (maldita), e todos os seus muitos benefícios, adorava contar e repetir esta história, chamando sempre a atenção de El-Rei para as vantagens de estabelecer em terra sua o Santo Oficio (maldito). El-Rei ponderava muito pouco a tal respeito e respondia sempre: - Irra! Há uma única fé ancestral que é a do zelo dos homens. Eu dou-lhes o tribunal!

Reuniam-se sempre e tomavam caldos de galinha e mezinhas que aliviar achaques, e suavam frio e maldiziam a hora em que tinham aceite a incumbência de El--Rei. Um, era francês, escultor-decorador, de nome Nicolau; o outro, nem sabia de que terra era, passava por francês, italiano, português, umas vezes carregava nos erres, das outras não. Chamava-se Boytac, era arquitecto e arquitectava enquanto o outro decorava. Ou, pelo menos, ambos faziam por isso. El-Rei queria uma obra grandiosa, tão grandiosa que nunca a teria se fosse do tamanho que sonhava. Boytac era o mais sofrido, tinha uma multidão de operários para gerir, e até vivia nas obras. Como muita gente se veio instalar nos arredores, e os basbaques punham-se o dia todo em cima do que se fazia, Boytac nem sabia para que lado se virar.
Nicolau Chanterenne, o francês, tinha uma pequena equipa de uma dezena de artistas, com essa podia bem, o que mais o penava era a mania de El-Rei de o insultar a propósito disto e daquilo e de mais aqueloutro. - A Igreja, disse Boytac, vai ficar assim uma cruz grande. Ao pé do altar-mor enterra-se o rei, isto é, ali ficará o seu túmulo. - Bon Dieu! Se ao menos fosse já amanhã! - O transepto será grandioso, como viste na sala do risco. E depois as duas naves laterais e a central, com uma porta a sul e ao rio, e outra mais… - Bon Dieu! O rei quer colunas que lhe lembrem palmeiras de África e da Índia... - E remates de pedra com o feitio das cordas usadas nos navios... - E o seu túmulo pousado em costas de dois elefantes... Bon Dieu!
 - Sabes que lhe pedi mais operários? - E ele, Bon Dieu, o que te disse? - Que mandaria para cá todos os condenados à morte que encontrasse nas prisões... - Malédicton, Bon Dieu! - Estou a demitir-me. Que venha para cá esse João de Castilho que só sabe fazer abóbadas. - Ir vaniteux, Bon Dieu! - Imaginei um claustro muito fresco, repousante e luminoso. Assim uma renda de pedra. Encomendei-o a cento e quarenta escultores!
 -Je suis... babaud! Bon Dieu! - Vai ter sala de capítulo, para leituras e para quando for necessário ralhar, que nem os monges escapam de serem chamados a capítulo... E sacristia, claustro e um belo refeitório. Castilho diz que o tecto do refeitório terá de lembrar o casco de um navio visto por dentro.
 - Il est ivrogne, l'idiot! Bon Dieu! - A minha sorte é que por esta zona há muitas pedreiras e nelas muita pedra de lioz. E há fabricação de tijolos e de telhas. Tenho muito avanço no dormitório e nas paredes da igreja e em parte do claustro. Estive a fazer cálculos. A construção tem de ser feita de modo a que, em Junho, no primeiro dia de Verão, e em Dezembro, no primeiro de Inverno, os raios de sol-poente entrem pela janela do dormitório e vão direitos ao altar-mor da igreja para o iluminar com a sua luz dourada. Tenho feito muito, meu amigo... Não tenho é sossego com esse danado de El-Rei, que só me arremedeia». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de C. de Leitores/JDACT