«(…) Da terceira espécie, há só um e que é um padre e que trazia um
sambenito cor de fogo, ostentando o próprio retrato a meio-corpo, à frente, que
depois ficou exposto na igreja dos Dominicanos. As provas do seu judaísmo eram
as mesmas que as dos outros, apenas foi acrescentado que ele confessara
acreditar que por isso, umas vezes cumprira uma, outras vezes cumprira outra. Após
o que foi declarado um apóstata, e condenado a ser degredado, a perder todos os
seus bens e a ser castigado de acordo com as leis; pelo que, em execução da dita
sentença, foi ali degredado e entregue à justiça secular, que o levou para o
seu próprio tribunal, onde os juízes lhe perguntaram se queria morrer na Lei de
Moisés ou na de Cristo, ao que ele respondeu na de Cristo como sempre vivera. Foi
então sentenciado a ser queimado e as suas cinzas lançadas ao rio e que o seu
nome se tornasse infamante; a qual sentença foi imediatamente executada; mas,
como declarara querer morrer como cristão, foi primeiro garrotado.
O cardeal, que fora ao país vizinho e regressara exultante, extaseado,
convertido à Inquisição (maldita), e todos os seus muitos benefícios, adorava
contar e repetir esta história, chamando sempre a atenção de El-Rei para as
vantagens de estabelecer em terra sua o Santo Oficio (maldito). El-Rei
ponderava muito pouco a tal respeito e respondia sempre: - Irra! Há uma única fé ancestral
que é a do zelo dos homens. Eu dou-lhes o tribunal!
Reuniam-se sempre e tomavam caldos de galinha e mezinhas que aliviar
achaques, e suavam frio e maldiziam a hora em que tinham aceite a incumbência de
El--Rei. Um, era francês, escultor-decorador, de nome Nicolau; o outro, nem
sabia de que terra era, passava por francês, italiano, português, umas vezes carregava
nos erres, das outras não. Chamava-se Boytac, era arquitecto e arquitectava
enquanto o outro decorava. Ou, pelo menos, ambos faziam por isso. El-Rei queria
uma obra grandiosa, tão grandiosa que nunca a teria se fosse do tamanho que
sonhava. Boytac era o mais sofrido, tinha uma multidão de operários para gerir,
e até vivia nas obras. Como muita gente se veio instalar nos arredores, e os
basbaques punham-se o dia todo em cima do que se fazia, Boytac nem sabia para
que lado se virar.
Nicolau Chanterenne, o francês, tinha uma pequena equipa de uma dezena
de artistas, com essa podia bem, o que mais o penava era a mania de El-Rei de o
insultar a propósito disto e daquilo e de mais aqueloutro. - A Igreja, disse
Boytac, vai ficar assim uma cruz grande. Ao pé do altar-mor enterra-se o rei,
isto é, ali ficará o seu túmulo. - Bon Dieu! Se ao menos fosse já
amanhã! - O transepto será grandioso, como viste na sala do risco. E depois as duas
naves laterais e a central, com uma porta a sul e ao rio, e outra mais… - Bon
Dieu! O rei quer colunas que lhe lembrem palmeiras de África e da Índia...
- E remates de pedra com o feitio das cordas usadas nos navios... - E o seu
túmulo pousado em costas de dois elefantes... Bon Dieu!
- Sabes que lhe pedi mais operários? - E ele, Bon Dieu, o que te disse? - Que mandaria para cá todos os condenados à morte
que encontrasse nas prisões... - Malédicton,
Bon Dieu! - Estou a demitir-me. Que venha para cá esse João de Castilho
que só sabe fazer abóbadas. - Ir
vaniteux, Bon Dieu! - Imaginei um claustro muito fresco, repousante e
luminoso. Assim uma renda de pedra. Encomendei-o a cento e quarenta escultores!
-Je suis... babaud! Bon Dieu! - Vai ter
sala de capítulo, para leituras e para quando for necessário ralhar, que nem os
monges escapam de serem chamados a capítulo... E sacristia, claustro e um belo
refeitório. Castilho diz que o tecto do refeitório terá de lembrar o
casco de um navio visto por dentro.
- Il est
ivrogne, l'idiot! Bon Dieu! - A minha sorte é que por esta
zona há muitas pedreiras e nelas muita pedra de lioz. E há fabricação de tijolos
e de telhas. Tenho muito avanço no dormitório e nas paredes da igreja e em
parte do claustro. Estive a fazer cálculos. A construção tem de ser feita de
modo a que, em Junho, no primeiro dia de Verão, e em Dezembro, no primeiro de
Inverno, os raios de sol-poente entrem pela janela do dormitório e vão direitos
ao altar-mor da igreja para o iluminar com a sua luz dourada. Tenho feito
muito, meu amigo... Não tenho é sossego com esse danado de El-Rei, que só me
arremedeia». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
Cortesia de C. de Leitores/JDACT