«(…) Como quer que seja, as investigações fundamentais de José Mattoso
estabeleceram sem sombra de dúvidas a relevância de que se revestiu o serviço
da mesa e a comensalidade no séquito dos
primeiros reis de Portugal. Os detentores dos ofícios atrás referidos
foram presença assídua na corte dos primeiros monarcas, como se comprova pela
sua menção nos documentos, mas a sua identificação permitiu estabelecer que o dapifer, embora muitas vezes nobre, foi
geralmente de menor categoria social do que o mordomo. Por exemplo, durante
parte significativa do reinado de Sancho I, o copeiro foi um nobre
oriundo da Galiza, João Fernandes Lima, o Batissela, cuja ascensão social e política parece indissociável do
seu controlo deste ofício, continuando ligado à corte durante o governo de Afonso
II. Testemunho indirecto do prestígio e distinção da comensalidade na
corte do primeiro rei em Coimbra são também as menções na literatura
genealógica a episódios ocorridos durante banquetes em que o rei estava
presente. Trata-se de anedotas que transmitem tradições nobiliárquicas pouco
lisonjeiras quanto à realeza de Afonso Henriques, como estabeleceu Mattoso.
Mas quando nelas se incluem, por exemplo, menções aos modos pouco corteses do
nobre transmontano Fernão Mendes Bragança de quem, por causa de uma pouca de nata que lhe caíra pela
barba, se riam os demais aristocratas que comiam com Afonso
Henriques, essas micro-narrativas também revelam que os banquetes
régios eram ocasiões de observação mútua entre a nobreza que frequentava a
corte, e que essa experiência comum permaneceu como mais um elemento
significante nas memórias linhagísticas da nobreza portuguesa.
Os ofícios e práticas da comensalidade na corte portuguesa ganham, no
entanto, uma maior visibilidade e nitidez quando consideramos as realidades do
século XIII, o verdadeiro ponto de partida deste ensaio de interpretação. As
transformações económicas e sociais sobrevindas com a denominada revolução comercial da Idade
Média trouxeram o crescimento da economia monetária e uma profunda mudança nas
atitudes e nos usos do dinheiro, transformações que foram acompanhadas pela
expansão do uso da escrita em diversos âmbitos da sociedade portuguesa, levando
a um maior volume de documentação produzida nas várias esferas da administração
régia. O estabelecimento de um registo de chancelaria a partir de 1217 é um exemplo bem conhecido desta
evolução, que devemos relacionar também com mudanças sobrevindas no sistema e
nas técnicas de contabilidade e registo relacionadas com a Casa do Rei. Dois
tipos de textos permitem avaliar a amplitude destas transformações na orgânica
dos ofícios ligados à mesa do rei:
- A legislação, mais abundante a partir de 1220, registando sucessivas medidas prescritivas quanto a este sector da Casa Real, e também os registos contabilísticos a ela ligados, de que nos restam importantes fragmentos para os anos de 1278-1282. Entre 1258 e 1261, o rei de Portugal instituiu um notável conjunto de decretos ou leis regulamentando muitos aspectos da organização da corte, em particular no que diz respeito à Casa do Rei.
Disposições em tudo semelhantes foram estabelecidas pelo vizinho
monarca de Leão e Castela, Afonso X, nas Cortes de
Valhadolide do mesmo ano de 1258.
Deparamos, assim, com uma orgânica composta de vários departamentos distintos
ligados à comensalidade e ao sustento do séquito na segunda metade do século XIII,
onde em alguns casos se perfilava já uma diferenciação entre oficiais maiores e menores. Por exemplo, encontramos o copeiro, a par do
escanção, ligado ao serviço da bebida, e vários oficiais distintos ligados à
administração da comida. Nestes se destacava o uchão, que surgia já nomeado
entre os oficiais da casa no reinado de Afonso II (r. 1211-1223). Este último vocábulo provém do francês huche, designando uma arca ou contentor
de madeira usado para o cereal ou outras vitualhas. Foi vocábulo que se usou
também na Galiza, e surge nas fontes portuguesas e galegas com grafias diversas
como eichão e ichão. As atribuições do uchão
seriam, como sugere a documentação contabilística atrás referida, as de
aquisição e armazenamento de alimentos diversos na corte do rei português. Com
efeito, uma carta de conto e receita
passada a dois uchões do monarca Afonso III menciona que, ao
comprador da ucharia posto sob a autoridade daqueles oficiais, teriam sido
entregues entre 1257 e 1270, além de uma soma de dinheiro que
ultrapassava vários milhares de libras, também uma impressionante quantidade de
vitualhas:
- 1168 vacas, 2425 porcos e 3661 carneiros dos gados do rei, e ainda 677 vacas, 2738 porcos e 6973 carneiros de colheitas, ao que se juntaram 7850 peixotas secas,317 congros secos, 2658 talhos de baleia, e 1656 lampreias secas, todo esse peixe igualmente proveniente de colheitas pagas ao rei pelas populações.
Outro aspecto da orgânica dos ofícios da comensalidade que estas fontes
permitem esclarecer é a mencionada divisão entre as duas cozinhas, à qual se
refere a lei de 1258 nestes precisos
termos:
- Na cozinha do rei não adubem [preparem] senão de duas carnes, e uma seja de duas guisas, [maneiras], e isto seja no paço. No dia de pescado, para o jantar de três pescados ou de dois. E um pescado seja adubado de duas guisas, e isto seja no paço. E na cozinha d'el-rei de seu corpo, adubem para seu corpo como ele mandar (Portugalie monumenta histórica, Leges et consuetudines, Academia das Ciências, 1856-1873. Ordenações del Rei Dom Duarte, FCG, 1988).
In A Mesa dos Reis de Portugal, Ofícios, Consumos, Cerimónias e
Representações, séculos XIII-XVIII, Coordenação de Ana Isabel Buescu e David
Felismino, Apresentação de Maria Helena Cruz Coelho, Temas e Debates, Círculo
de Leitores, 2011, ISBN 978-972-42-4695-6.
Cortesia de Temas e Debates/JDACT