«(…) O reino acabara de viver no ano anterior a rude guerra civil entre
pai e filho. A causa fora o homicídio de Inês e a dolorosa surpresa que isso
provocara em Pedro. Com a ajuda dos irmãos da desditosa e sacrificada dona, Álvaro
Peres de Castro e Fernando de Castro que tinham por si as vilas e os castelos
da raia galega, o príncipe português talara os campos de entre Douro e Minho e
viera pôr um duro cerco à cidade do Porto. O burgo, defendido por um homem do
rei, Álvaro Gonçalves Pereira, prior do Hospital e seu compincha nas voltas do
Salado, barrara as investidas dos invasores, sem sofrer sequer um beliscão. No
Verão, o príncipe, desanimado e insatisfeito com o correr da guerra, aceitou a
mediação da mãe, essa velada Brites que lhe acudira em Santa Clara aos filhos
órfãos, e as pazes assinaram-se em Marco de Canaveses. O pai, mais moído do que
pudera antecipar quando em Montemor ordenara a batida a Coimbra para degolar a
nora, abdicava na prática no filho, oferecendo-lhe a real jurisdição no crime e
no cível, e aceitava que os filhos de Inês se juntassem na corte ao herdeiro
legal de Pedro, o apessoado e gentil Fernando, filho do curioso casamento de
Pedro e Constança Manuel, donde haviam saído os misteriosos amores de Inês, que
muitos diziam que haviam levado pelo meio, como adubo vivaz, os ardentes beijos
da própria Constança.
Nesta doída e confusa situação de luto viera a rainha-mãe de Castela
encontrar o reino e a família. O pai, Afonso IV cada vez mais abatido pelo peso
dum homicídio; o irmão, Pedro, precocemente envelhecido aos trinta e cinco anos
por uma perda brutal; a mãe, Brites, rodeada por três órfãos, dois meninos
aterrorizados, João e Dinis, e uma menina, inocente ainda, na puerícia,
Beatriz. Começavam então a correr as primeiras histórias da censurável justiça
do príncipe. Fazia do cível uma mania, quando não um terror. Tinha um séquito completo
de copistas, meirinhos, mordomos, confessores, físicos, notários, carrascos e executores.
Estes eram os mais sinistros, vestidos de saiote de cabedal, cinta larga de
corda e capuz preto na cabeça, onde só os olhos encarvoados se viam luzir. Não
havia povoação ou casal que o príncipe não vasculhasse à procura duma
iniquidade. Caprichava nas torturas e nos castigos. Vingava-se assim do próprio
pai, oferecendo aquela desmedida sanha à alma da sua injustiçada amante.
O sangue, mais forte que o vinho, inebriava-o, mergulhando-o num êxtase
de vago e olvido. Exorcismava o terror das recordações com as imagens do terror
da vida. Preferia estas, que ele próprio manobrava a seu modo, às outras, muito
mais violentas e desgovernadas. Quando nos intervalos do ofício, a lucidez lhe
regressava, a tristeza e o desespero entravam nele. Nesses momentos uma única
cousa o apaziguava, ir namorar, a chorar, a terra do campo santo onde repousava
o mutilado corpo da amante. Rojava-se então naquelas pedras que tanto ele como
o Mondego lavavam de abundantes lágrimas. Dizia-se que num desses lances de
desesperada recordação, com a saudade a cortar-lhe a alma, prometera aos
soluços sobre a laje que cobria Inês reinar viúvo, nunca mais tendo princesa ou
rainha consigo.
Ai, as saudades! Tanto que se podia sobre elas discorrer.
Passo, mas notando antes que este príncipe foi o primeiro que entre nós as
sentiu tão aflitivas que delas acabou por ficar prisioneiro, assim deixando
notícia de si. Ó rei saudade, sempre que passo pelo teu nome baixo os olhos em
sinal de preito. Venero a tua dor e a paisagem sofredora da tua lembrança. E
isso chega para ir ao teu beija-mão fantástico e póstumo. Mal chegou a Évora, a
rainha-mãe sentiu o peso das suspeições em que o reino andava. Não havia dúvida
que aquela atmosfera negra e fúnebre que sobre ele descera com a morte de Inês
ainda não findara. Fora abalo demasiado poderoso para chegar ao fim com as
pazes do Marco. As nuvens corriam grossas à procura de alívio. Seguidamente, quando
o pai se deslocou a Évora para a abraçar, percebeu que o próximo rombo viria
por ali. Era homem de sessenta e seis anos, cuja robustez sempre fora gabada.
Chamavam-lhe o Bravo, pela compleição
forte, pela intrepidez do montear e pela ferocidade no justar e no julgar.
Agora, porém, mais parecia débil folha quebradiça que alão impulsivo e audaz.
Emagrecera muito, já que de todo perdera o interesse no comer e no beber. Vivia
num fastio permanente, atormentado pelos pensamentos dos últimos meses e pelas
imagens que se desencadeavam no seu espírito e lhe traziam à memória as cenas
de Santa Clara e o que se seguira.
Tinha nos ouvidos o choro desabrido daquelas duas crianças, João e Dinis,
e no coração um vazio tão áspero que nem orar podia. A aridez de coração, quer
chegue por insensibilidade, quer venha por falta ou insatisfação, é pior que
peçonha, pois esta mata e alivia e a outra tortura e agita. Assustava-se o rei
com qualquer ruído e estava irreconhecível, mesmo para quem como a filha não o
via há mais de quinze anos. - A natural passagem das horas e dos anos tudo nos
brita, meu pai. - Mais danosa, senhora, é a culpa que nos rói. - Não cureis,
senhor, do que não tem remédio. Atentai que os negócios do reino pedem del-rei
o siso. - Os negócios do reino e o siso del-rei... Quem em tal caso o pode ter? Mais de jeito me vai o desvairo.
Maria preferiu não responder. Vivia na alcáçova de Évora, numa
casa contígua à Sé. Pediu uma cuvilheira para lhe demandar os órfãos de Martim
Afonso Teles. Tinha medo do efeito nefasto que aquela visão imprimiria no
pai, lembrando-lhe os netos, mas não podia evitar o assunto. Vieram os quatro
órfãos. João Afonso passara já a primeira idade, aquela em que era de obrigação
viver com as donas, e apresentava-se um formoso rapaz que tanto recordava a
elegância de Fernando como a afoiteza de João de Castro, os primeiros
netos do rei de Portugal. Maria, passara também os sete anos,
e despertava em graças, bem guardada e cordata, ainda que com o alforge cheio
de boas e vivas manhas, como era esperado em manceba da sua idade. Gonçalo era
ainda tamanhino, pois mal acabava de empecer entre os que se erguiam nas duas
pernas para andar. Leonor por fim era criança de colo, chupando ainda o alimento
do seio da ama; nada se lhe apurava digno de nota, além do silêncio velado em
que atravessava os dias. Eis a primeira vez que aos dedos me vem a figura, não
o nome, de Leonor Teles. Traz com ela uma nuvem de silêncio e escuridão,
essa mesma em que hoje se envolve a sua memória de rainha velada e maldita. É espantoso
como o nascimento e a morte se equivalem a um tal ponto que é quase impossível
distinguir um recém-nascido dum moribundo». In António Cândido Franco, Vida
Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-8092-59-5.
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