«’O principal, segundo Molero’, continuou Austin, ‘era a
frustração dela, tratava-se de uma mulher com mais de trinta anos que não podia
ter filhos, tinha sido casada anteriormente com um negociante de antiques, um tal
Svobo, homem que praticamente não é chamado para esta história, ele acordou
nela o adormecido, mas sempre latente, instinto maternal, há que considerar a
diferença de idades, Molero sublinha isto, embora paralelamente introduza
as sugestões implícitas na circunstância dele encontrar nela o refúgio para
todas as suas complexidades congénitas e assimiladas, houve um encaixe de necessidades,
ela e a sua frustração maternal, ele e a imagem desoladora, ainda tão fresca,
de uma infância golpeada’. ‘Ela queria fazer teatro, não era?‘, perguntou mister
DeLuxe, um tanto distraído. ‘Foi isso da Comédie
Française’, disse Austin, apagando o cigarro no cinzeiro, ‘mas não
resultou, de qualquer modo ela era dada às artes plásticas, assinou um manifesto
chamado Situação de Vanguarda, que
teve o seu efeito explosivo, embora efémero’.
Austin aclarou a garganta e prosseguiu: ‘O que parece ter efectivamente
acontecido foi a revelação para ele, vindo de um meio em que proliferava a
cópula a taxímetro, em quartos alugados, de uma ligação sexual adornada de
mimos e ternuras, muitas dentadinhas no lóbulo da orelha, muitas festinhas no
sexo, muita languidez no olhar, ela fazia-o sair lentamente, com uma paciência
infinita, das águas negras do bowling
e de outros jogos tenebrosos, anotando Molero a páginas oitenta e quatro
que o rapaz tinha o ego desfeito, o ego era uma papa, ouvia o pai resfolegar e
a mãe gemer mesmo ao lado, separados por um tabique, e havia o ranger da cama,
o pai estava quase sempre bêbado, aquilo era muito demorado, a mãe não se
queixava, era massacrada todas as noites, a memória do rapaz recolheu noites e
noites de gemidos, ele na cama ao lado fechava os olhos e cerrava os punhos, o
coração batia-lhe nos ouvidos, eram noites alucinantes e ardentes, aquilo
acontecia mais no Verão, o pai ficava possesso com o calor, bebia e jogava o bowling, destruía a mãe, no
quarto ao lado, separado por um tabique’. Mister Deluxe franziu o sobrolho.
‘Hum’, fez ele. ‘Quando eles se juntaram’, continuou Austin, ‘depois
daquilo do Matisse e do Miró, dormiam numa cama, sim senhor, mas
tinham relações no chão porque o rapaz não podia ouvir o ranger da cama, era
sempre no chão que faziam aquilo, e ela sempre silenciosa porque ele tinha nos
ouvidos os gemidos da mãe, uma vez ela gemeu e ele começou a gritar, teve uma
crise e, durante dois ou três dias, houve um verdadeiro afluxo do inconsciente
ao nível da epiderme, ele tinha continuamente nos ouvidos os gemidos da mãe, o
ranger da cama e o som de garrafas partidas, apertava a cabeça com as mãos,
esteve no limiar da loucura, foi ela que o salvou, envolveu-o no maior dos
carinhos, inventou as carícias mais leves, mais suavemente penetrantes, punham
um cobertor no chão e ela não gemia, era fundamental que ela não gemesse, ela
sabia isso, entregava-se a isso, segundo Molero, com a maior das
volúpias, a volúpia da entrega silenciosa, não havia prazer ou dor que profanasse
aquele santuário de silêncio, foram as noites dos beijos mais húmidos e do amor
mais surdo, o rapaz emergia lentamente das águas negras através do mais aberto
e silencioso dos corpos, ficava horas sobre ela, a manhã chegava e encontrava-os
abraçados, ela apertava-o muito e murmurava amo-te, o ondear da voz junto ao ouvido
dele, a dentadinha no lóbulo da orelha, o sol escorrendo pelas coxas e pelas espáduas,
e ele, de olhos fechados, a ouvir o mundo lá fora com uma grande paz no coração’».
In
Dinis Machado, O Que Diz Molero, Livraria Bertrand, Amadora, 1977.
Cortesia de Bertrand/JDACT