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«(…) Pelo contrário, é perfeitamente evitável, penso eu, enquanto, com
grande sinceridade, respondo que me encontro parado, à espera de uma ideia. Não
falo, porque não vale a pena, da discreta angústia que essa espera me causa. E
entretanto, enquanto a ideia não lhe cai no regaço, vai colaborar para a
revista, é isso? Abro a boca para dizer: O
quê?! Mas engulo a interrogação porque seria embaraçoso admitir que fui
apanhado de surpresa, que o João Carlos não me falou neste assunto e que não sei
ainda, sequer, se me apetece ou não embarcar no mais recente dos muitos navios
editoriais que este querido amigo tem lançado ao mar e ao naufrágio. Seria
embaraçoso para ela, entenda-se, porque sentiria ter cometido uma
inconfidência.
Embora eu não creia que isso a afectasse grandemente. Encolho os ombros
e só neste momento reparo que tal gesto exigiu um esforço maior do que seria
normal. O que, em si mesmo, é normal, presentemente: dura há vários dias a sensação
de que o mundo inteiro resolveu pôr-se a descansar sobre os meus ombros. E não
tenho a mínima vocação para Atlas. Entretanto, há uma pergunta em suspenso, a
pedir resposta. Julgo que sim. Fiquei de falar hoje com o João Carlos. A propósito,
ele já devia ter chegado. Então, ela levanta-se, diz que tem de ir-se embora.
Acrescenta, em tom de gracejo: não quer que o Grande Chefe a encontre aqui, não
vá ele pensar que arrastou propositadamente a entrevista para não ter de voltar
à redacção. Uma gracinha convencional.
Acompanho-a até à porta. Ao despedir-se, vejo que hesita. Os usos e
costumes da sua geração permitiriam que, embora me tenha visto hoje pela
primeira vez, me desse um beijo na cara, como quem cumprimenta o pai (ou o avô)
e, tenho a certeza, é esse gesto que ela está a considerar. Por isso, tomo eu a
iniciativa de um outro gesto: estendo-lhe a mão. Ela aperta-a brevemente. Sinto
que esta despedida a confundiu, que interpretou o aperto de mão como uma recusa
de familiaridade. No que tem plena razão. Ainda não sou avô (por mero acaso, é verdade)
e como pai já tenho a minha conta. Depois, quando ela entra no elevador,
digo-lhe: - Desculpe a minha distracção. O seu nome... pode repeti-lo? - Teresa Lemos.
Ambos sorrimos para que o encontro termine, pelo menos, em cordialidade.
Quando fecho a porta sinto um alívio que me parece desproporcionado. Estou
habituado a entrevistas, embora não as conte, salvo raras excepções, entre as
coisas que me dão mais prazer. Quando as faço, como jornalista, sigo ainda
aquele antiquado método de procurar saber o mais possível sobre a minha vítima
antes de me encontrar com ela, digo ainda,
e antiquado porque, tanto quanto
vejo, esse método caiu em desuso. Quando sou eu a vítima, como escritor, o meu
único e grande cuidado é tentar falar de modo suficientemente claro, primário
até, para que depois não me ponham a dizer exactamente o contrário do que eu
disse, o que já tem acontecido.
De qualquer forma, e em qualquer das posições, estou habituado.
Portanto, eu próprio não entendo a minha atitude em resposta ao pedido, quase
ordem, do João Carlos: Quero publicar
uma entrevista contigo, vou destacar uma miúda porreira para fazer isso».
In
João Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica de Santo Adriano), ASA Editores,
Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.
Cortesia de ASA/JDACT