O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«(…) Um grupo de cavaleiros, que vinha do lado das Portas da Moeda,
afastam-se da multidão e fora colocar-se na praia contígua a Vila Nova de
Gibraltar, em sítio desafogado, donde se viam bem os navios em construção
na Ribeira e se abrangia de um
lance de olhos uma parte, porventura a mais bela do soberbo panorama da cidade,
desde a torre de menagem do castelo, arrogante e formidável como um velho
guerreiro medievo na sua rija armadura de batalha, à fímbria de espumas do
Tejo, a espreguiçar-se pelas areias, nas indolências de um lago que o sol
houvesse enlanguecido. Compunha-se o
grupo de um homem de mais de cinquenta anos, de um rapazinho de pouco mais de
doze e de dois escudeiros.
De forte musculatura, o rosto alvo e levemente rosado, que as rugas
cruzavam profundamente, as longas barbas já embranquecidas, o velho cavaleiro
tinha a distinção e o aspecto de um homem de guerra. Percebia-se-lhe a altivez
de quem está habituado ao mando. Adivinhava-se-lhe no olhar, calmo e firme, um
grande ânimo resoluto, a intrépida serenidade leonina, cujas cóleras seriam
talvez formidáveis. Montava um soberbo cavalo baio da Andaluzia, coberto de
opulentos jaezes. Ao lado do velho
cavaleiro, montando um morzelo de pequena
estatura, aprumava-se garbosamente o seu juvenil companheiro, relanceando em
volta de si um doce olhar de sonhador. Era formoso e gentil. Os seus grandes
cabelos loiros anelados davam-lhe o aspecto de um desses belos arcanjos,
ideados pelos poetas e pelos sonhadores do seu século.
De quando em quando se fitavam nele os olhos do cavaleiro de barbas
embranquecidas, envolvendo-o num olhar de imenso amor. - Aqui nos quedaremos,
Lourenço. Olhai, daqui se vê a contento o arcaboiço das naus da Índia e toda
essa turbamulta de curiosos – disse para o pequeno. - Onde vos aprouver, pai e
senhor - volveu o juvenil cavaleiro. E de pé nos estribos, relanceou um longo
olhar por todo aquele formoso e estranho panorama, que lhe deslumbrava o espírito.
– Que lindo isto é! - exclamou - E que donairosas caravelas ali no Tejo! E
ficaram-se a contemplar o trecho da cidade.
Atrás deles, os escudeiros conversavam despreocupadamente. Era opulento
o trajar daqueles dois escudeiros. Trazia o velho fidalgo, que tudo nele estava
indicando a sua alta jerarquia, um gorro de duas voltas com firmal de oiro,
gibão de brocado e seda, pelote de cetim alionado,
de largas mangas golpeadas, ao uso da época. Pendiam-lhe do cinto, marchetado
de prata, um punhal e uma espada de punhos doirados e de bainhas de veludo com
bocais e ponteiras de prata doirada. Brilhavam-lhe grandes esporas de prata nas
altas botas cordovesas. Ondulava uma
pluma branca no gorro do juvenil cavaleiro, e eram mais vivas as cores do seu
gibão. Não vestia pelote, não trazia colar de oiro, nem espada e punhal. Outros
cavaleiros apareceram na praia. A nobreza, que se não incorporava na comitiva
real, afastava-se dos grandes ajuntamentos.
Ainda não havia seges em Lisboa, e nenhum fidalgo andava a pé por entre
as multidões, a não ser no cortejo de alguma procissão. Só não apareciam a
cavalo nestas grandes reuniões públicas, sem carácter religioso, os que, pela
idade ou pelas enfermidades, já não podiam sair senão de liteira. Os próprios eclesiásticos
andavam frequentemente a cavalo. Da banda das Portas Novas do Mar entrou
na praia um cavaleiro, coberto de pó, e em traje que indicava uma larga jornada.
Era seguido por um velho criado. - Guarde-vos Deus, senhor dom Francisco. Bom encontro
o meu, por vida minha! - disse o recém-chegado, acercando-se do velho fidalgo e
acariciando o rosto do pequeno.- Vós por aqui, sr. Afonso de Albuquerque! No
paço vos julgava, para acompanhardes El-rei, sr. estribeiro-mor!... - De Sua
Alteza alcancei licença para ir à minha quinta do Paraíso, e por lá estive toda
a semana que passou. Vinha ali às Portas Novas do Mar, quando dei conta
da gente que para aqui se encaminhava. Perguntei o que havia, e então me
disseram que Sua Alteza viria agora ver e dar nome às naus da Ribeira. Não era tempo de ir ao paço para
acompanhar El-Rei, nem deste modo, coberto de pó, me seria dado ajuntar-me à
comitiva real. Assim, pois, tive por melhor torcer caminho e ver daqui a passagem
de El-rei.
- E bom foi, que assim me dais o
prazer da vossa companhia, sr. Afonso de Albuquerque. - Bem melhor fortuna é a
minha, que me trouxe aqui, dom Francisco. - Com este belo tempo criador há-de
estar um encanto a vossa quinta de Alhandra. - Estão lindas e de boa promessa
todas aquelas veigas e colinas. E
desta forma continuaram conversando, afectuosamente, Francisco de Almeida,
o ilustre filho do primeiro conde Abrantes, e Afonso de Albuquerque, o
nobre filho dos senhores de Vila Verde, o homem que fora educado na corte de D.
Afonso V e era estribeiro-mor de El-rei João
II». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico,
Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT