In Memoriam de Maria Isabel Raposo
Aperto Libri. Uma representação simbólica da descodificação textual
Paradigma
«O significado com que aqui tomo a expressão apertio libri não é aquele com que representamos o gesto vulgar de
abrir materialmente o suporte da escrita chamado livro, para podermos dar
início à leitura. O que aqui entendo por apertio
libri visa a representação simbólica de todo o processo da codificação e
descodificação textual, com toda a problemática adjacente que vai da poiética
à hermenêutica, ou, de uma forma simples,
que vai da produção à recepção do texto, passando pela sua transmissão.
Para ser mais transparente no que pretendo comunicar, esclareço que a
perspectiva em que tomo a apertio libri,
como ponto de partida, está expressa no paradigma bíblico dos primeiros versículos
do cap. 5 do Apocalipse:
- E vi na mão direita daquele que estava sentado no trono um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte que gritava em alta voz: quem é digno de abrir o livro e de quebrar os seus selos?
O livro que aqui se pressupõe tem a forma de um rolo: pois só assim se
entende que esteja escrito por dentro e por fora. Como se sabe, o livro da
época clássica tinha a forma de um rolo de papiro escrito apenas na face
interior. Quando o rolo, depois de lido, era enrolado em torno de um cilindro,
o umbilicus, atava-se-lhe uma fita
antes de ser guardado numa caixinha que tinha o nome de capsa. Uma carta ou documento importante cujo conteúdo não devia
ser revelado era selado ou lacrado com um ou mais selos. O livro que nos é
apresentado no Apocalipse é algo fora
do vulgar: primeiro porque, contra o que é habitual, está escrito por
dentro e por fora; segundo porque a sua mensagem está altamente
protegida, não com um mas com sete selos; em terceiro lugar, porque ninguém podia, nem no céu, nem
na terra nem debaixo da terra, abrir o livro, nem olhar para ele. Os termos
em que o livro é aqui representado instauram uma simbologia da escrita como
algo de oculto e de secreto, com níveis de leitura diferenciados, por dentro e
por fora, cuja decifração é um acto de poder.
E com eles, de facto, que se institui uma como teologia da escrita e da
leitura. Ou, para usar uma expressão menos marcada, foram os comentadores
patrísticos e medievais que lançaram as bases de uma poética da escrita e de
uma hermenêutica da leitura, bases da
cifração e decifração do texto. Mas voltemos aos textos sagrados, origem e
fonte de toda essa simbologia. A apertio
libri enquadra-se numa cerimónia grandiosa que é descrita por alguém que
teve uma visão, que foi arrebatado e viu. Na esfera do sublime não há escrita
sem arrebatamento. Veremos que o arrebatamento é uma forma teórica alternativa
à inspiração divina, que consiste na possessão da mente do poeta por parte de
uma divindade.
Segundo Platão, o poeta pode ser enganado ou ludibriado pela divindade.
Nessa outra forma de inspiração que é o arrebatamento, o escritor não pode ser
enganado, porque se limita a descrever os factos ou realidades que se vão
desenrolando diante dos seus olhos. Não se trata, pois, de uma escrita fabulosa
ou subjectiva, inventada no interior do sujeito da escrita, mas de uma
realidade objectiva transcrita pelo agente da enunciação. Encontram-se
frequentes afirmações de que o escritor é testemunha visual da realidade que
viu e a sua escrita é fidedigna porque o seu testemunho é verdadeiro. Em última
análise o que aqui temos é a proclamação do critério de veracidade da escrita,
enquanto produto de uma experiência obtida em estado de arrebatamento e de
visão. Este princípio fundamenta a teoria das visões que se escreveram em todas
as épocas e constitui uma autêntica
poética do visionarismo que procura os seus fundamentos nas visões proféticas
do A. T. e N. T. É segundo os
princípios desta poética, e não de outra forma, que deve ser feita a decifração
dos textos.
Há elementos que são constantes neste tipo de enquadramento e que indiciam
a presença do mistério inefável da
divindade, insondável e indescritível, sugerida pelo trono, pedras preciosas, arco-íris, vestes brancas, coroas de ouro,
relâmpagos, vozes, trovões, candelabros, superfície cristalina das águas,
animais fabulosos, etc. No caso do cap. IV do Apocalipse, os animais, quatro, que estão em volta do trono, têm
uma simbologia própria, que lhes advém do facto de estarem cheios de olhos em
volta e por dentro. Parece tratar-se da mesma simbologia do livro escrito
por dentro e por fora».
In Arnaldo Espírito Santo, Aperto Libri. Uma representação simbólica da
descodificação textual, Da Decifração em Textos Medievais, coordenação de Ana
Morais, Teresa Araújo, Rosário Paixão, IV Colóquio da Secção Portuguesa da
Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri,
Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.
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