quarta-feira, 15 de maio de 2013

Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval. José Mattoso. «As crenças acerca dos seres invisíveis que povoam o céu, o inferno e os outros lugares do Além suscitaram algumas das práticas mais arreigadas, mais complexas, mais perturbadoras e mais criativas de novas práticas e novos rituais»

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Pressupostos mentais do culto dos mortos
«Para interpretar correctamente os dados fornecidos por uma investigação arqueológica sobre as necrópoles de qualquer época será sempre necessário ter em linha de conta os pressupostos mentais subjacentes ao culto dos mortos. Sem pretender invadir o terreno dos antropólogos, nem o dos historiadores da religião, mas procurando, ao mesmo tempo, colher os seus ensinamentos, gostaria de apresentar algumas considerações de carácter geral sobre o culto dos mortos, em particular aqueles dos seus elementos que têm uma incidência mais directa sobre as práticas funerárias, como contributo essencial para a historia das mentalidades. Situo-me, para isso, do ponto de vista ocidental. Interessam-me particularmente os elementos que explicam as práticas funerárias cristãs, mas sem excluir uma tentativa de os interpretar à luz de pressupostos universais; estes são, pelo contrário, a maior parte das vezes, a chave do verdadeiro sentido a dar aos rituais, no seu conjunto e nas suas particularidades. São os pressupostos universais que devem orientar a interpretação das soluções próprias de uma determinada cultura e não o contrário. Apresentar aquilo que creio serem os pressupostos universais e a maneira como são interpretados pela civilização ocidental, tal é o objectivo das linhas que se seguem. É evidente o seu carácter ensaístico. Consequentemente, a grande dose de incerteza e de provisoriedade das reflexões aqui apresentadas.
Comecemos por reflectir naquilo que os mortos representam para os vivos, numa sociedade dominada pelo pensamento simbólico e pelas práticas rituais. O culto dos mortos pressupõe, antes de mais, que eles não são atingidos por um aniquilamento total: passam a fazer parte de um mundo invisível, regido por leis cuja compreensão escapa ao comum dos homens. o seu desaparecimento e a decomposição do seu cadáver não significam apenas a morte em si mesma, mas, sobretudo, a passagem a outra forma de existência. Não necessariamente uma existência individual, tal como a viriam a conceber os cristãos, sobretudo a partir dos séculos XI e XII, quando começam a interpretar o dogma da ressurreição dos corpos como uma reanimação do corpo individual, com os caracteres específicos que o distinguem do de qualquer outra pessoa, mas sobretudo como uma outra vida em que se tornam os sujeitos de forças e de acções de origem invisível. A existência invisível dos mortos tornar-se-ia, mesmo, um dos elementos fundamentais da explicação e de compreensão das forças que se verifica existirem no mundo físico e cuja actuação permanece misteriosa para o homem.
Esta identificação dos mortos com potências ocultas aproxima-se, numas culturas, das forças anímicas que presidem à fecundidade da terra, dos animais e dos homens; noutras, ao sucesso e à boa sorte; noutras, ainda, ao bem e ao mal. Nas primeiras, atribui-se à acção dos mortos o aparecimento material de novas vidas, sobretudo no seio da família que eles deixaram; essa crença poderá estar na base daquela doutrina a que se viria a chamar, em sistemas mentais e em religiões mais evoluídas, e até com justificações teológicas, a reincarnação. Mas surge em várias culturas como um íntimo relacionamento da vida com a morte, ou seja, como uma força vivificadora e regeneradora atribuída aos mortos, quer estes se concebam como um todo mais ou menos indefinido, quer como o conjunto dos antepassados. Noutras culturas parece prevalecer o relacionamento dos mortos com o sucesso, a boa ou má sorte, a prosperidade ou o infortúnio.
É evidente que o acento posto sobre este aspecto da influência dos mortos sobre o destino dos homens se situa numa área imediatamente contígua à anterior, visto que a fecundidade é a expressão mais imediata e mais biológica do sucesso, da boa sorte e da prosperidade, e que a preservação da vida é condição essencial do sucesso. Como é evidente, porém, estes conceitos acabam por prevalecer em áreas culturais mais complexas, mais evoluídas ou mais diversificadas. O culto dos manes e dos lares na Roma antiga está evidentemente imbuído destas crenças». In José Mattoso, Poderes Invisíveis, O Imaginário Medieval, 2001, Temas e Debates, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-644-233-0.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT