Pressupostos mentais do culto dos mortos
«Para interpretar correctamente os dados fornecidos por uma investigação
arqueológica sobre as necrópoles de qualquer época será sempre necessário ter
em linha de conta os pressupostos mentais subjacentes ao culto dos mortos. Sem
pretender invadir o terreno dos antropólogos, nem o dos historiadores da
religião, mas procurando, ao mesmo tempo, colher os seus ensinamentos, gostaria
de apresentar algumas considerações de carácter geral sobre o culto dos mortos,
em particular aqueles dos seus elementos que têm uma incidência mais directa
sobre as práticas funerárias, como contributo essencial para a historia das
mentalidades. Situo-me, para isso, do ponto de vista ocidental. Interessam-me
particularmente os elementos que explicam as práticas funerárias cristãs, mas
sem excluir uma tentativa de os interpretar à luz de pressupostos universais;
estes são, pelo contrário, a maior parte das vezes, a chave do verdadeiro sentido
a dar aos rituais, no seu conjunto e nas suas particularidades. São os
pressupostos universais que devem orientar a interpretação das soluções próprias
de uma determinada cultura e não o contrário. Apresentar aquilo que creio serem
os pressupostos universais e a maneira como são interpretados pela civilização
ocidental, tal é o objectivo das linhas que se seguem. É evidente o seu carácter
ensaístico. Consequentemente, a grande dose de incerteza e de provisoriedade
das reflexões aqui apresentadas.
Comecemos por reflectir naquilo que os mortos representam para os
vivos, numa sociedade dominada pelo pensamento simbólico e pelas práticas
rituais. O culto dos mortos pressupõe, antes de mais, que eles não são atingidos
por um aniquilamento total: passam a fazer parte de um mundo invisível, regido
por leis cuja compreensão escapa ao comum dos homens. o seu desaparecimento e a
decomposição do seu cadáver não significam apenas a morte em si mesma, mas,
sobretudo, a passagem a outra forma de existência. Não necessariamente uma
existência individual, tal como a viriam a conceber os cristãos, sobretudo a
partir dos séculos XI e XII, quando começam a interpretar o dogma da ressurreição
dos corpos como uma reanimação do corpo individual, com os caracteres
específicos que o distinguem do de qualquer outra pessoa, mas sobretudo como
uma outra vida em que se tornam os sujeitos de forças e de acções de origem
invisível. A existência invisível dos mortos tornar-se-ia, mesmo, um dos
elementos fundamentais da explicação e de compreensão
das forças que se verifica existirem no mundo físico e cuja actuação permanece
misteriosa para o homem.
Esta identificação dos mortos com potências ocultas aproxima-se, numas
culturas, das forças anímicas que presidem à fecundidade da terra, dos animais
e dos homens; noutras, ao sucesso e à boa sorte; noutras, ainda, ao bem e ao
mal. Nas primeiras, atribui-se à acção dos mortos o aparecimento material de
novas vidas, sobretudo no seio da família que eles deixaram; essa crença poderá
estar na base daquela doutrina a que se viria a chamar, em sistemas mentais e em
religiões mais evoluídas, e até com justificações teológicas, a reincarnação. Mas surge em várias
culturas como um íntimo relacionamento da vida com a morte, ou seja, como uma
força vivificadora e regeneradora atribuída aos mortos, quer estes se concebam
como um todo mais ou menos indefinido, quer como o conjunto dos antepassados. Noutras
culturas parece prevalecer o relacionamento dos mortos com o sucesso, a boa ou
má sorte, a prosperidade ou o infortúnio.
É evidente que o acento posto sobre este aspecto da influência dos mortos
sobre o destino dos homens se situa numa área imediatamente contígua à
anterior, visto que a fecundidade é a expressão mais imediata e mais biológica
do sucesso, da boa sorte e da prosperidade, e que a preservação da vida é
condição essencial do sucesso. Como é evidente, porém, estes conceitos acabam
por prevalecer em áreas culturais mais complexas, mais evoluídas ou mais
diversificadas. O culto dos manes e
dos lares na Roma antiga está evidentemente
imbuído destas crenças». In José Mattoso, Poderes Invisíveis, O Imaginário
Medieval, 2001, Temas e Debates, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-644-233-0.
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