História trágico-parlamentar
«Há-de estar lembrado o leitor de jornais da última luso-contribuição
para o Guiness parlamentar: o tempo
recorde em que os deputados da República aumentaram os próprios vencimentos
para níveis por assim dizer europeus! Os deputados deputaram, na circunstância,
a toda a pressa e a mais que toda a eficiência: pouco palavreado e muita acção,
conforme a famosa palavra de ordem do não menos famoso professor de Coimbra, Carlos
Mota Pinto. A bem da Nação, o facto foi aqui cantado na melhor prosa que na
altura se pôde. O país ficou, enfim, com deputados lustrosos e prestigiados (passado pouco tempo prestigiaram-se também a
si próprios os outros políticos). Alguém tinha que entrar à frente na CEE e
foram entrando os políticos, enquanto não chega a vez dos desprestigiados operários, professores, desempregados e assalariados
sem salário, a quem, como se sabe, não basta porem-se de pé todos ao mesmo
tempo para chegarem ao ramo europeu da árvore das patacas do Orçamento.
A operação parlamentar foi cansativa. E a discussão do Orçamento do
Estado apanhou os deputados da Maioria ainda ocupados a conferir as
folhas de vencimentos. Foi assim que, tendo alguém, parece, carregado por
engano no botão da disciplina de voto (até
podem ter sido as mulheres da limpeza das direcções do PS e do PSD), os
deputados da Maioria, levantando-se instintiva mente mal ouviram a
campainha, aprovaram outro dia, sem saber o que estavam a votar, uma proposta
da Oposição...
O Governo entendera orçamentalmente que devia estimular os portugueses
sem casa a comprar casas aos construtores civis com casas para vender. E
decidiu passar sem a sisa dos que comprassem casas até cinco mil contos. Os
deputados do CDS, todavia, sensíveis como são à igualdade dos cidadãos perante
o Orçamento (ou há moralidade...),
acharam que estavam a ser injustamente discriminados pelo Governo os portugueses
que comprassem moradias com piscina e garrafeira, que, como é sabido, custem
mais que cinco mil contos. Fizeram as contas e propuseram que se dispensassem
também da sisa os compradores de casas até 15 mil contos. No caso dos
deputados, por exemplo, sempre havia de ser injusto pagar-lhes salários
europeus, por um lado, e não lhes facilitar depois a compra de casas europeias!
A Maioria que não: que também o Governo precisava de aumentar
proventos e que, em ano de eleições, não se podia ir buscar tudo ao Imposto
Profissional. Insistiu o CDS que sim, e a Maioria cedeu até aos 10 mil
contos! Teimou o CDS que era pouco, que os preços das piscinas e das garrafeiras
estão pela hora da morte. E estava-se nisto quando, para desempatar, a
Mesa decidiu ir a votos. Quem dá mais?,
perguntou a Mesa. Era o chamado momento da verdade. Só que, como se costuma
dizer, a catástrofe espreitava. Naquele momento, no gabinete das direcções
partidárias da Maioria, alguém terá inocentemente reparado no luzidio botão
da disciplina de voto.
E, convencido de que chamava o contínuo para mandar comprar tabaco,
premiu e campainha, que retiniu vibrantemente na Assembleia e na consciência
partidária dos deputados do PS, do CDS e do PSD. Levantou-se instintiva e
disciplinadamente a deputação. E a proposta do CDS (as crónicas parlamentares não contam se os deputados do CDS se sentaram
instintivamente quando viram a Maioria de pé, e votaram por engano
contra a sua proposta...) foi aprovada pela Maioria!
Quando deram conta da tragédia os deputados quiseram dar o dito por não
dito e o votado por não votado. O CDS e Mesa, contudo não deixaram. E assim os
portugueses que tenham em vista moradias de 15 mil contos podem ir pedindo o
papelinho das Finanças a dispensá-los de sisa e marcando a escritura no
notário, enquanto no Parlamento a deputação da Maioria se esmifra
agora em imaginar soluções para trocar as voltas à votação e o secretário de
Estado A… D… para tapar outro buraco de meia dúzia de milhões, como se lhe não bastassem já os buracos e
as correntes de ar com que o seu rico Orçamento chegou à AR depois da travessia
do Governo.
Estando posta de parte a hipótese de os deputados da Maioria
ficarem de castigo virados para as paredes do Parlamento, ou passarem a
usar o 90 nos primeiros tempos do
mandato, sabido que o seguro obrigatório não cobre a forma como se conduzem nas
votações, resta aguardar para ver quem
vai pagar a factura, se os vencimentos dos deputados se o seu, leitor,
e o do cronista. O país, e os
vencimentos do país que ainda tem vencimentos, presos da dúvida, ficam à espera
dos próximos episódios.
In JN,23/2/1985.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio & Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT