quarta-feira, 15 de maio de 2013

Evocação Histórica. Afonso Henriques. Mário Domingues. «Este tratado, que se negociou secretamente em 1106, fora inspirado por Hugo, abade do mosteiro de Cluny, e jurado pelos condes aliados nas mãos de Dalmácio Gevet, emissário do grande confidente do Papa Gregório VII»

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Luta obstinada pela Independência
Os condes Raimundo e Henrique firmam aliança secreta para se apoderarem da herança de Afonso VI
«(…) Mas, bruscamente, toda a Europa estremeceu, sacudida por um acontecimento de extraordinária importância religiosa. Surgira Pedro Eremita, bem apoiado pelo papa Urbano II, a pregar a primeira Cruzada. A sua mística exaltação, a sua fé ardente e a sua palavra arrebatadora criaram um clima de tal modo heróico que os mais audazes cavaleiros cristãos não hesitaram em partir para a Terra Santa, no propósito de libertarem da afrontosa presença muçulmana o túmulo de Jesus. Sabe-se como foi desastrosa essa aventura no oriente. Das centenas de cavaleiros cristãos que partiram, poucos puderam voltar com vida e muitos por lá se quedaram cativos dos maometanos.
Contudo, este desastre não impediu que, seis anos decorridos, em 1101, nova Cruzada seguisse para a Síria, e nessa segunda aventura parece quase certo ter-se também incorporado o conde Henrique. Como decorreu por lá a sua existência? Entrou em combate? Cometeu façanhas de vulto? A história mantém-se silenciosa a tal respeito. Teria chegado a partir? Duvida-se. De certeza, apenas se sabe que em 1105 se encontrava em Portugal, talvez de regresso do Oriente, e que em 1106 vivia na corte do rei de Leão e Castela, seu sogro. Também se admite a hipótese, sem documento que o confirme, de que Maurício, por essa época bispo de Coimbra, o acompanhasse nessa viagem à Síria e que tivesse aproveitado a passagem da armada genovesa que em 1104 ajudara Balduíno na conquista de Ptolemaida, para os transportar.
Do que parece não haver dúvidas é que, desde certo momento, depois da sua suposta viagem à Síria, já o não satisfazia a relativa autonomia que desfrutava no governo do seu território, apesar de este constituir propriedade sua e hereditária. Dir-se-ia pesar-lhe a vassalagem em que tinha de permanecer perante o imperador. As primeiras aspirações de independência teriam germinado então no seu espírito. E, acaso, não estariam também encorajando o conde as próprias aspirações de independência do velho povo lusitano, que, através dos séculos anteriores, sacudira sempre que pudera o jugo estrangeiro? Talvez o amor à liberdade da rude Lusitânia e as ambições de grandeza geradas na mentalidade feudal do fidalgo bolonhês coincidissem nesse momento histórico.
Simultaneamente, no conde Raimundo seu primo, que governava a Galiza, despertavam ambições semelhantes, estimuladas pelo facto de sua mulher D. Urraca ser filha legítima e primogénita de Afonso VI. Daí o julgar-se o conde no direito de herdar a coroa de Leão, por morte de seu sogro. E estas pretensões eram bem aceitas pela nobreza do reino. Sucedia, porém, que o monarca tinha um filho, o jovem Sancho, com que o brindara Zaida, filha de Ibn-Abed, emir de Sevilha, e tencionava deixar-lhe o trono. Esta intenção, desagradando sobretudo a D. Urraca, que, além de primogénita, se julgava mais legítima, talvez por ser filha de cristã, e era extremamente ambiciosa, como os factos o confirmarão, originou inimizades e provocou atritos entre Raimundo e o velho rei de Leão e Castela, cujo fim os herdeiros pareciam desejar sofregamente.
Sabendo que Afonso VI já exarara em testamento a sua última vontade de que Sancho, filho de Zaida, lhe sucedesse no trono, o conde Raimundo, talvez instigado pela mulher, tratou de preparar-se para obter pela força o que legalmente lhe negavam. Firmou então, em segredo, uma aliança com o conde Henrique, também interessado em arredar Sancho do caminho das suas ambições, para ambos tomarem o trono de assalto, apenas Afonso VI falecesse. Como prémio da sua colaboração, o conde de Portugal receberia Toledo e uma das três partes em que se dividiria o tesouro que se encontrava nessa capital. Este tratado, que se negociou secretamente em 1106, fora inspirado por Hugo, abade do mosteiro de Cluny, e jurado pelos condes aliados nas mãos de Dalmácio Gevet, emissário do grande confidente do Papa Gregório VII.
Pelas principais cláusulas do pacto, os dois poderosos condes deviam servir-se lealmente, respeitando a vida e a liberdade um do outro, e ajudar-se contra quem os atacasse ou tentasse espoliá-los do território adquirido. Se Raimundo não pudesse dar Toledo a Henrique, devido às dificuldades que a conquista da capital oferecia, obrigava-se a ceder-lhe as terras da Galiza, logo que fosse pacífico detentor de tudo». In Mário Domingues, D. Afonso Henriques, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1970.

Cortesia de Romano Torres/JDACT