Sobre a história da sexualidade e da afectividade
«(…) Parece-me, portanto, que o mérito atribuído ao afecto
conjugal é um valor constante e permanente, mesmo em épocas em que suspeitamos
a grande frequência de uma prática contrária. Creio ter alguma importância
verificar isto hoje, em que parece querer-se aferir a importância dos valores
usando como padrão a sua prática efectiva. Gostaria de dizer alguma coisa sobre
o valor do corpo na expressão do afecto, mas a exiguidade do tempo obriga-me a
passar rapidamente ao tema da sexualidade, em que já não encontramos a mesma
permanência de valores nem de normas.
Mantendo-me ainda no domínio dos valores, parece-me
importante começar por averiguar como veio a evoluir o valor atribuído ao erotismo,
estritamente ligado ao afecto. O facto de ele estar ligado, nas sociedades
primitivas, a uma função sagrada, o que se verifica em muitos costumes
religiosos, entre os quais a prostituição sagrada, e de surgirem desde muito
cedo manifestações da sua relação com a inspiração poética e artística, mostra
que constituía um efectivo valor, ou seja, que se promovia o culto do erotismo.
Nas sociedades mais evoluídas, porém, nota-se uma evidente tendência pera o
circunscrever dentro de certos limites: considera-se normalmente como próprio
da juventude, cultiva-se fora do casamento e pratica-se quase exclusivamente
nas relações entre indivíduos activos de classes superiores, normalmente
homens, e passivo de classes inferiores, normalmente mulheres, sem dar lugar a
relações estáveis.
Como é evidente, o valor da sexualidade em função da
reprodução foi de tal modo acentuado, desde as origens do cristianismo, embora
sem afectar o valor superior da virgindade, que passou a constituir a única
justificação do matrimónio e a subordinar todos os outros valores nela
contidos. A história desta alteração de perspectivas é bastante obscura, tanto
nos seus antecedentes pagãos como na sua evolução por influência cristã. Sem
pretender esclarecer decisivamente o problema, não deixarei de observar que o
maniqueísmo, ou seja, a doutrina da oposição radical entre o bem e o mal, e da
identificação do bem com o espírito e do mal com a matéria, consequentemente
também com o corpo, perece ter sido a corrente doutrinar que mais contribuiu
para acentuar a depreciação do erotismo e a desvalorização do matrimónio. E
embora o maniqueísmo tenha sido condenado como heresia por vários autores
cristãos do século IV e por alguns sínodos episcopais, não se pode negar que
exerceu uma influência enorme, quer directamente, quer indirectamente por
intermédio do neoplatonismo, sobre quase todo os movimentos rigoristas cristãos
e nomeadamente sobre as doutrinas cristãs acerca da sexualidade e do matrimónio.
Quando santo Agostinho, no século
IV,expôs a sua doutrina acerca do pecado original, que ele associava
intrinsecamente à concupiscência carnal, e, portanto, à própria atracção sexual,
estava ao mesmo tempo a associar o erotismo e o pecado, e portanto a negar-lhe
qualquer valor positivo. A velha tradição pagã que, por razões completamente
diferentes, associa o sexo com o sagrado, e que por isso exige a abstinência
sexual para a pureza ritual, ou seja, para a participação em actos de culto, veio
apoiar esta tendência rigorista, levando o clero a exigir a abstinência dos
cônjuges em certos períodos do ano litúrgico, como a Quaresma e o Advento, nos
dias festivos e antes de se receberem os sacramentos. Ou seja, invertia-se a
noção sagrada do sexo e relegava-se para o domínio mais profano das acções
humanas». In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História
Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.
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