Volta à terra que te viu nascer
«(…) Em 1472, quando o navio
chegou ao Restelo, existia defronte da praia uma pequena ermida, ocupada por
monges, uma casa de oraçom. À volta da pequena igreja terão
nascido alguns casebres de apoio à marinhagem itinerante, servidos por
iniciativas oportunas de homens que negociavam em tudo. Seriam algumas dessas
pessoas que por lá exerciam de uma forma mais permanente o seu labor que
poderiam estar de vigia, juntamente com mouros
forros, gente que trabalhava o amanho das terras de dia e sucumbia logo que
o Sol se punha e o sono chegava. Havia ainda a presença dos referidos monges,
que poderiam também ver o navio a lançar ferros, ou servidores destes, mas uns
e outros deitavam-se cedo, pois tudo deveria estar preparado para a oração matinal,
antes de o Sol nascer.
De qualquer forma, nessa noite de fluidos cinzentos, nem os bicos dos
pés se viam, quanto mais um barco silencioso e imprevisto.
Que caravela era esta afinal?
O navio transportava um bem de impressionante valor para o rei de Portugal,
justificando o sigilo da chegada, quer pelo seu conteúdo, quer pelas pessoas
que trazia a bordo, quer ainda porque cumpria uma promessa que Afonso V fizera.
Poucos tinham conhecimento das verdadeiras razões que levaram a barca até Ceuta
e a forma apressada como partiu de 1á para Portugal. Não era habitual os barcos
fazerem viagens até Marrocos e regressarem no mesmo dia e sem carga, e este, o tempo
que permaneceu no porto da cidade africana foi o estritamente necessário para
abastecer, fazer reentrar os que tinham saído e zarpar, sem mercadoria ou
passageiros que não tivessem que ver com a tripulação e com a missão que a
levara até ao outro lado do Mar do
Meio. A bordo apenas entraram mais duas caras novas, um cavalo e um
caixote alongado, desaparecendo este logo à chegada no camarote do comandante.
Por seu lado, os tripulantes, ignorando os reais motivos da viagem,
estavam assim mesmo convencidos da sua importância, porque dos dois que
entraram um era mouro e o outro um homem que aparentava ser cavaleiro ou
escudeiro, pois era ele que trazia o animal. Mas desconfiados estavam. O mouro, tratado de forma amistosa
e reverente, a quem era permitido usar os aposentos destinados apenas ao
comandante, mais os convencia de que o investimento estava nele e naquilo que
poderia trazer para o reino. Se os tripulantes sabiam pouco, o cavaleiro sabia
tanto como eles e nem se dava ao trabalho de querer saber mais, pois não era
essa a sua missão. Escolheram-me, disseram-me
que a incumbência era de alto gabarito e que receberia alvíssaras, que mais é
preciso saber? Os que me aliciaram são daqueles a quem não se pode dizer não,
porque haveria de fazer perguntas, recordava o homem que não sabia ao
que vinha.
Despeitados por tanta deferência, a marinhagem discutia a meia voz
outras hipóteses:
- mandatário diplomático?
- Cativo de alta estirpe para futuro resgate?
- Aliado do rei para nova incursão a Marrocos?
Tudo era permitido à deturpada imaginação de quem não via com bons
olhos as vantagens que o inusitado passageiro usufruía. Não era ele inimigo da fé cristã? Perplexidade com resposta adiada
e efabulação segura. Escandalizados, do seu ponto de vista, não havia razão para
tal despautério, tanto mais que os filhos de mafamede passavam um mau bocado no
Norte de África, perdendo para os cristãos o ascendente que até então gozavam no
Magrebe. Disso ninguém duvidava. Todos sabiam que as praças chegadas ao
Mediterrâneo caíam por inanição, lutas internas e ausência de um poder forte,
sujeitando os governadores das cidades vencidas à perda dos seus haveres como espólio
e a tomada dos seus familiares como garantes da sua própria liberdade.
Quem era então o misterioso
mouro? Era, nem mais nem menos, Mulley Belfaca, o filho do rei de
Fez, a maior autoridade para certificar o valioso espólio que viajava
dentro do caixote. Ao fim de muitas e lamentáveis negociações, cristãos e muçulmanos
pareciam entender-se de forma menos ambígua, depois de décadas de negociações
duvidosas e desconfiadas. Foi assim que se projectou o acordo com Mulley
Belfagege, rei de Fez, que nomeou seu representante Mulley
Belfaca».
In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos
Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-724-067-6.
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