Heranças. Animais,
imagens e símbolos nos poetas greco-latinos
«Como já tivemos ocasião de escrever, pertence a Homero o arquétipo
das imagens e dos símbolos utilizados na poesia grega e, posteriormente, na
latina. Com efeito, são as epopeias
homéricas que, pela primeira vez, nos apresentam animais não apenas
associados simbolicamente a deuses, à morte e ao tempo, mas também tomados como
espelho de comportamentos e sentimentos humanos. Porque a matéria é vastíssima,
deixaremos de lado a simbologia do transcendente. Não esqueçamos, no entanto, o
facto de também ser nos poemas homéricos que, pela primeira vez, encontramos
animais ligados à divindade e, também pela primeira vez, metamorfoses de deuses
em animais, vestígio de antigas divindades zoomórficas.
Não esqueçamos igualmente que começam na epopeia homérica as
referências a cães selvagens, aves de rapina e até peixes, como índice de morte
receada: receada, porque se acreditava não receberem sepultura condigna
e, portanto, não serem acolhidos no Hades
os corpos devorados por animais necrófagos. Não esqueçamos, por fim, que está
na Odisseia
a primeira referência a uma ave simbólica da Primavera, o rouxinol, que ainda manterá este valor
durante muitos séculos, apesar de a
andorinha já aparecer com valor idêntico a partir de Hesíodo. Limitar-nos-emos
à associação de animais a circunstancialismos da vida humana. Comecemos pela Ilíada.
Poema da guerra, a audácia, bravura, destemor e outras qualidades dos seus
heróis são frequentemente descritas, tal como os seus defeitos e fraquezas, por
meio de comparações muito elaboradas, os símiles, que transformam
simples abstracções em imagens vivas e sugestivas. Assim:
- os heróis lutam com a bravura de leões ou javalis;
- com a raiva de javalis acossados por uma matilha de cães;
- com a sanha de lobos sanguinários;
- com a persistência de cães de caça;
- ou até, um tanto inesperadamente, com a teimosia de um burro que nem o medo do pau faz mover.
Assim também, partem para o combate com o garbo de belos cavalos;
desesperam com a morte de companheiros como leões a que roubaram os filhotes;
defendem os cadáveres de amigos como uma novilha protege a cria, etc., etc. O inimigo
ora é apresentado como vítima indefesa de animal mais forte, ora, se se quer
sobrevalorizar o herói, como animal igualmente nobre. Alguns exemplos apenas,
todos eles tão pictóricos que parecem cenas de um qualquer documentário sobre a
vida animal. Heitor luta com os Aqueus:
- como javali ou leão se volta no meio de cães e caçadores, orgulhoso da sua força, mas eles, agrupando-se em massa, fazem-lhe frente e, das mãos, atiram-lhes lanças sem conta; o seu nobre coração não sente medo ou vontade de fugir: é o valor que o mata. Dá muitas voltas sondando a fila de caçadores e, onde quer que irrompa, a linha cede.
Leão e javali são, portanto,
sinónimos neste símile de bravura. O mesmo acontece com o touro.
Outro trecho: Aquiles arma os Mirmídones (ou Mirmidões):
- como lobos carnívoros, no ânimo dos quais há enorme força, que, nos montes, devoram um grande veado cornudo, despedaçando-o; todos têm as mandíbulas vermelhas de sangue e vão, em bando, a uma fonte de águas negras apanhar à superfície, com as línguas estreitas, a água escura, vomitando o assassínio de sangue.
Atente-se na conotação sangrenta da sanha do lobo e no reforço do
horrendo pela associação das águas negras. Bem ao contrário, há pitoresco no símile
do burro, representativo da persistência de Ájax Telamónio, ao
enfrentar o inimigo:
- como um burro perto de terra lavrada, ao qual os rapazes se atiram. É lento, pode ser espancado. Entrando no espesso trigal, tosa-o. Os rapazes batem-lhe com paus. Fraca força a deles: dificilmente o expulsam, enquanto se não fartar do pasto.
Mas Homero tinha um certo fascínio pelos heróis troianos, sobretudo
por Heitor. Veja-se como realça o garbo do filho de Príamo, confronto
repetido noutro passo, aplicado ao belo Príris:
- como cavalo habituado ao estábulo, alimentado na manjedoura com cevada, se liberta da corda e galopa, orgulhoso, pela planície, acostumado a banhar-se na corrente do rio caudaloso; ergue alto a cabeça e sacode a crina para um lado e para outro; confia no seu orgulho e os joelhos levam-no rapidamente para os pastos das jovens éguas.
In Maria Isabel Gonçalves, Animais, Imagens e Símbolos nos Poetas
Greco-Latinos, Animalia, Presença e Representações, coordenação de Miguel
Alarcão e Outros, Lisboa, Edições Colibri, 2002, ISBN 972-772-353-5.
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