Porquê consagrar quatro ou cinco anos da
nossa vida a um determinado personagem, em vez de outro? Precisamente porque
ele agrada-me, interessa-me, diverte-me, comove-me, pelos seus méritos, pelos
seus triunfos, pelas suas misérias, pelas suas grandezas e, até, pelos seus
defeitos e, por vezes, pelos seus vícios. In Jean Orieux, A Arte do Biógrafo, História
e Nova História, Lisboa, 1989.
Introdução
«A frase - Ensinar, se soubesse!
Sintetiza, em apenas três palavras, toda a vida e obra de Emílio Martins Costa,
autor cujo pensamento e acção nos propomos estudar aqui parcialmente. Estamos
perante uma figura que, vivendo entre 1877
e 1952, foi coeva das grandes transformações que marcaram a história de
Portugal nas últimas décadas de oitocentos e nos primeiros trinta anos do século
XX. Participou na revitalização do Partido Republicano a partir de 1897 e na agitação académica que se
desenvolveu em Lisboa, com intensidade desigual, entre aquele ano e 1901; bebeu avidamente as ideias novas
então em voga, ideias radicais que propunham drásticas transformações da
sociedade, ideias maximalistas, aliciantes para uma juventude generosa, sempre
disposta a destruir as injustiças ancestrais num ápice e a construir um mundo
novo, hipoteticamente mais equilibrado, no momento seguinte.
O caminho que Emílio Costa escolheu e trilhou foi
o da independência assumida até às últimas consequências, rejeitando tutelas e
preconceitos de qualquer tipo que lhe condicionassem o pensamento e lhe dirigissem
a acção. Essa assunção da liberdade como valor supremo, essencial e norteador,
levá-lo-á a uma constante revisão de posições, frequentemente geradora de
conflitos e de polémicas públicas, por vezes de grande dureza, as quais lhe
acarretarão incompreensões e inimizades duradouras. Alguns momentos fulcrais da
história do Portugal contemporâneo terão a sua intervenção empenhada e
criadora. E o caso do grande debate sobre a questão do regime - Monarquia ou República - travado
com particular ênfase a partir do início do século XX.
Sendo conscientemente libertário numa clara opção intelectual e não
emocional, ao contrário de tantos outros, Emílio Costa não se esquivou a
defender publicamente, numa primeira fase, a colaboração com os republicanos.
Foi um dos raros teorizadores, sólido
e coerente, do anarquismo intervencionista em Portugal, embora viesse
depois a rever esta postura, remetendo-se para um criticismo que, no entanto,
estava longe da neutralidade quietista. De facto, contrariando um esteio fundamental
do pensamento libertário desde os tempos do grande debate entre Karl Marx
e Miguel Bakunine no seio da Associação
Internacional dos Trabalhadores, o
apoliticismo, Emílio Costa não se furtava a pontuais tomadas de posição
implicitamente políticas, que considerava legítimas e justificáveis em face dos
fins a atingir. Distinguia claramente a política, enquanto atitude inerente à
sociabilidade humana, e os partidos, em cuja teia nunca se deixou enredar e
cuja actividade sempre julgou com desconfiança. Ele próprio confessará, em
jeito de balanço, que nunca pertenci ao que se chama um partido
político (...) e também devo dizer que nunca votei em eleições oficiais. Nunca contribuí
para alguém ser deputado, vereador ou membro duma junta de freguesia.
Não reduzia a sua actividade ao campo legal; bem pelo contrário, defendeu a
necessidade de outras formas de organização e de acção, de carácter ilegal e
revolucionário.
Ao mesmo tempo, traduziu para português as primeiras obras teóricas
sobre o sindicalismo-revolucionário francês, inspirado na Carta de Amiens, trabalhos que datam de 1909, originalmente publicados pela Librairie des Sciences Politiques & Sociales na Bibliothèque
du Mouvement Socialiste, depois Bibliothèque du Mouvement Prolétarien.
Embora dedicasse especial atenção às questões então muito em voga, como o
militarismo, a acção directa ou a organização da sociedade futura, não
subestimava aquilo que designava por pequenas conquistas, isto é, tudo o
que pudesse contribuir para o progresso e para o avanço da humanidade, passo a
passo, em direcção a uma sociedade mais justa e mais feliz.
Não era um homem amarrado a ideias preconcebidas, por mais luminosas e
salvadoras que pudessem parecer. Talvez seja essa a razão fundamental que
explica uma certa resistência em se confundir no colectivo, não obstante ter
participado com entusiasmo em grupos de propaganda ou noutras agremiações de
diverso tipo. Ele, que estava longe e bem longe de Stirner, cujo
pensamento criticou com veemência, e que nunca foi, por isso, um anarquista individualista,
preferia actuar a solo em vez de se diluir no anonimato impessoal de um coro, emergindo
aqui e ali, nos seus escritos, perspectivas implicitamente elitistas. Mesmo
quando integrado em colectivos, a sua voz sobressaía pela qualidade do discurso
e pela inovação das propostas». In António Ventura, Entre a República e a
Acracia. O Pensamento e a Acção de Emílio Costa (1897-1914), Edições Colibri,
Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-94-0.
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