quarta-feira, 22 de maio de 2013

Guerreiro e Monge. Romance Histórico. Campos Júnior. «Os grandes mercadores, os aljubebes como então se dizia, os vendedores de livros e de perfumes da rua Nova de El-Rei, a famosa predecessora da moderna rua dos Capelistas, predecessora pelo local e por ter sido também o centro da alta finança…»

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O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«(…) Havia na capital o quer que fosse de extraordinário no dia 26 de Abril de 1494. Mais excitação, mais ruído, maior movimento nas ruas, como se em todos palpitasse um forte sentimento de curiosidade. De todos os pontos da cidade, do Castelo, da Betesga, do Rossio, das bandas do Carmo, da Moiraria, da Alfama, de Vila Nova de Gibraltar, magotes de gente de todas as classes e condições afluiam, num grande e alegre borborinho, às imediações da Ribeira, que já então se chamava das Naus, e ficava próximo das antigas Tercenas Navais. Fechavam-se apressadamente as tendas da rua das Linheiras e as oficinas das ruas dos oirivezes do oiro e da prata, aquelas pequenas oficinas onde os lavrantes portugueses fundiam e cinzelavam essas obras de peregrino engenho, que são ainda hoje o espólio opulento da arte ornamental daqueles tempos.
Os grandes mercadores, os aljubebes como então se dizia, os vendedores de livros e de perfumes da rua Nova de El-Rei, a famosa predecessora da moderna rua dos Capelistas, predecessora pelo local e por ter sido também o centro da alta finança, mandavam trancar açodadamente, pelos escravos moiros e negros, as portas chapeadas das suas lojas ou boticas, pois que também assim se denominavam. Era a rua Nova a mais larga de Lisboa, com os seus sessenta palmos craveiros, 13,6 metros, de uma a outra correnteza de arcos, que de um e outro lado a marginavam, e ia atulhada de gente! Na dos ourives da prata, a velha rua da Prataria, nessa então, como era estreitíssima, a multidão acotovelava-se doidamente, num impulso irresistível de levada que houvesse alagado a represa. No largo do antigo Pelourinho, onde desembocavam as ruas de Ver o Peso, a rua Nova e a da Prataria, os escreventes de cartas e apontamentos, secretários públicos da turba dos analfabetos, haviam já levantado as bancas instaladas ao ar livre, por não contarem já com os proventos da sua aptidão epistolar naquele dia de revolta curiosidade.
Apinhava-se gente pelas torres e quadrelas da muralha que dava para o Tejo, e levantavam-se as adufas das janelas altas dos prédios mais próximos da Ribeira. Eram apenas oito horas da manhã e só a poder de formidáveis murros e coronhadas dos pesados arcabuzes a fila dos espingardeiros da guarda de El-Rei, que logo ao amanhecer se fora postar em volta da Ribeira das Naus, alcançava conter a onda do povo, a encapelar-se de momento a momento contra aquele muro de ferro.
De espaço a espaço, o anadel dos espingardeiros, ou como se disséssemos hoje o seu capitão, incitava os soldados à repressão da teimosia popular, clamando-lhes na sua formidável voz de estentor: - Fernan Gil, alçai o coice do arcabuz contra esse perro moiro, que se não queda um momento! - E vós lá, Mendo Ruivo, olhai o focinho de Pilatos desse judeu, que vo-lo está poisando no ombro! E na furiosa distribuição da pancadaria policial e urbana, o maior e o mais rude quinhão era para os pobres diabos dos judeus e para os escravos negros e moiros, que constituíam uma parte numerosa da população. Muito miserável havia de ser o mecânico ou o regatão que não tivesse um escravo moiro ou um negro, comprados for baixo preço nos mercados da escravaria.
Era uma enorme e dura monstruosidade aquela, mas não fora inventada em Portugal. Viera doutras civilizações. Fizera-se na Europa o tráfico da escravaria branca e tolerava-se ainda. A própria plebe, ao cabo de uma angustiosa luta de séculos, ainda não estava completamente emancipada da servidão, que por longuíssimos tempos a prendera à gleba rústica, à exploração e ao arbítrio dos senhores, como os cães das matilhas ou como os bois da lavoura, na propriedade privilegiada do barão ou do rico homem!» In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.

Cortesia de L. R. Torres/JDACT