O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«(…) Havia na capital o quer que fosse de extraordinário no dia 26 de
Abril de 1494. Mais excitação, mais
ruído, maior movimento nas ruas, como se em todos palpitasse um forte sentimento
de curiosidade. De todos os pontos da cidade, do Castelo, da Betesga,
do Rossio, das bandas do Carmo, da Moiraria, da Alfama,
de Vila Nova de Gibraltar, magotes de gente de todas as classes e
condições afluiam, num grande e alegre borborinho, às imediações da Ribeira,
que já então se chamava das Naus, e ficava próximo das antigas Tercenas Navais. Fechavam-se apressadamente
as tendas da rua das Linheiras e as oficinas das ruas dos oirivezes
do oiro e da prata, aquelas pequenas oficinas onde os lavrantes portugueses
fundiam e cinzelavam essas obras de peregrino engenho, que são ainda hoje o
espólio opulento da arte ornamental daqueles tempos.
Os grandes mercadores, os aljubebes como então se dizia, os
vendedores de livros e de perfumes da rua Nova de El-Rei, a famosa
predecessora da moderna rua dos Capelistas, predecessora pelo local e
por ter sido também o centro da alta finança, mandavam trancar açodadamente,
pelos escravos moiros e negros, as portas chapeadas das suas lojas ou boticas,
pois que também assim se denominavam. Era a rua Nova a mais larga de Lisboa, com os seus sessenta palmos craveiros, 13,6 metros, de uma a outra correnteza
de arcos, que de um e outro lado a marginavam, e ia atulhada de gente! Na dos
ourives da prata, a velha rua da Prataria, nessa então, como era
estreitíssima, a multidão acotovelava-se doidamente, num impulso irresistível
de levada que houvesse alagado a represa. No largo do antigo Pelourinho,
onde desembocavam as ruas de Ver o Peso, a rua Nova e a
da Prataria, os escreventes de cartas e apontamentos, secretários públicos
da turba dos analfabetos, haviam já levantado as bancas instaladas ao ar livre,
por não contarem já com os proventos da sua aptidão epistolar naquele dia de
revolta curiosidade.
Apinhava-se gente pelas torres e quadrelas da muralha que dava para o
Tejo, e levantavam-se as adufas das janelas altas dos prédios mais próximos da Ribeira.
Eram apenas oito horas da manhã e só a poder de formidáveis murros e coronhadas
dos pesados arcabuzes a fila dos espingardeiros da guarda de El-Rei, que logo
ao amanhecer se fora postar em volta da Ribeira
das Naus, alcançava conter a onda do povo, a encapelar-se de momento a
momento contra aquele muro de ferro.
De espaço a espaço, o anadel dos espingardeiros, ou como se
disséssemos hoje o seu capitão, incitava os soldados à repressão da teimosia popular,
clamando-lhes na sua formidável voz de estentor: - Fernan Gil, alçai o
coice do arcabuz contra esse perro moiro, que se não queda um momento! - E vós
lá, Mendo Ruivo, olhai o focinho de Pilatos desse judeu, que vo-lo está
poisando no ombro! E na furiosa distribuição da pancadaria policial e urbana, o maior
e o mais rude quinhão era para os pobres diabos dos judeus e para os escravos negros
e moiros, que constituíam uma parte numerosa da população. Muito miserável havia
de ser o mecânico ou o regatão que não tivesse um escravo moiro ou um negro, comprados
for baixo preço nos mercados da escravaria.
Era uma enorme e dura monstruosidade aquela, mas não fora inventada em
Portugal. Viera doutras civilizações. Fizera-se na Europa o tráfico da
escravaria branca e tolerava-se ainda. A própria plebe, ao cabo de uma
angustiosa luta de séculos, ainda não estava completamente emancipada da
servidão, que por longuíssimos tempos a prendera à gleba rústica, à exploração
e ao arbítrio dos senhores, como os cães das matilhas ou como os bois da
lavoura, na propriedade privilegiada do barão ou do rico homem!» In António
Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres,
Lisboa, 1952.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT