O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«(…) Lisboa não era então a grande e ruidosa cidade que é hoje. Mais
pequena e mais simples, mais rústica e mais crente, guerreira e monástica,
fanática e mercadora, vivia apertada no seu cinto de muralhas e repartia-se-lhe
a vida, a bem dizer, entre o lar e o templo, entre o palácio do nobre privilegiado,
a oficina do mecânico e a loja do mercador vilão. Estavam ainda as suas classes
profundamente extremadas, embora já fossem consideráveis as conquistas da
plebe; tinha outra feição, outras paixões, outros hábitos. Em fins do século XV
a cidade abrangia nos seus limites, traçados pelas formidáveis muralhas que o
rei Fernando
I opusera aos castelhanos, o núcleo das edificações que se continham no
Castelo de S. Jorge e se aconchegavam à protecção dos seus muros, pelos
declives do monte; o formigueiro
sombrio da Alfama, a populosa
Mouraria e, para além do Rossio, praça ampla e irregular, as casas da
encosta fronteira, que nem chegavam ao moderno Loreto. Ainda ficavam então fora das muralhas o monte da
Graça e os terrenos vizinhos das
Portas de Santo Antão e do paço dos Estaus,
onde é hoje o teatro de D. Maria II.
No terreiro, que se chamou de S. Roque, erguia-se a velha torre de
Álvaro Pais, junto às Portas do Condestável, como um rude padrão
das lutas épicas da independência. Atapetavam-se de pâmpanos a colina da Graça
e a de Almofala, fronteira à de Vila Quente; recortava-se em hortas e almuinhas
e ensombrava-se de pomares essa estreita Planura, que até então se chamava Valverde
e hoje se denomina Avenida da Liberdade. Cobriam-se de trigais e pomares as encostas
onde hoje se ostentam as formosas edificações do Príncipe Real, da Estrela e
de Buenos Aires. Vicejavam hortas e almuinhas na baixa do terreno que vai
do moderno largo do Conde Barão a Santos, onde havia uma casa de campo,
que João II adquirira e foi mais
tarde o palácio de verão, dilecto do rei Manuel I Ondulavam pela Pampulha
fora olivais e vinhedos, que iam até Alcântara, então um dos arrabaldes distantes
da cidade.
Na linha de montanhas que lhe cerravam o horizonte, as velas brancas
dos moinhos agitavam-se, como asas colossais.
Livre das peias que depois lhe puseram, o Tejo revolvia-se livremente
aos pés da cidade, e ia lamber com a espuma das marés as praias em que mais
tarde se demarcou o Terreiro do Paço
e, no século passado, se construiu uma parte do Arsenal da Marinha.
Encostado à antiga muralha, da banda do Oriente, desafogado de cubelos
e quadrelas guerreiras, a debruçar-se no rio, ficava o burgo mercantil da gente
hebraica, laborioso e próspero; a comuna dos judeus, a judiaria grande,
denominada Vila Nova de Gibraltar. Era o tolerado asilo daqueles ,expatriados;
asilo e cárcere. Em volta dele uivava às vezes, sinistramente, o velho ódio
católico; mas o sol, imensamente misericordioso, sem preconceitos de raça e sem
ódios de religião, aparecia-lhe logo ao nascer, como um recém-chegado do
Oriente, como se fora um mensageiro da remota Sion, a santa pátria extinta de Judá, e dava-lhe o seu mais generoso
quinhão de luz.
A cidade crescera consideravelmente em mais de três séculos. Tinha quinze
mil habitantes quando foi tomada aos moiros, em 1147, e teria em 1494
não menos de oitenta a noventa mil almas. A Lisboa moirisca não passava,
a bem dizer, do monte do Castelo,
a Kasba,
altaneira. Quando a cercaram os guerreiros de Afonso Henriques e os cruzados seus auxiliares, ficava fora das
muralhas o sítio onde está S. Vicente; o Rossio, leito entulhado
de um antigo esteiro do Tejo, era uma planura extra-muros, e no monte, onde
séculos depois se ergueu o convento do
Carmo, alvejavam então as tendas de campanha dos cruzados. Pois no
reinado de Fernando I (1367-1383),
a cidade havia absorvido uma parte dos arrabaldes do século XII, e
nacionalizara-lhe os habitantes moiros, os saloios, como lhes chamaram no tempo
da conquista e como ainda hoje nós denominamos os povos circunvizinhos da moderna
Lisboa.
O exército de João de Castela que pôs cerco à cidade em 1384, e que Lisboa repeliu heroicamente,
escrevendo com o próprio sangue a mais altiva epopeia da sua história, estabelecera
os seus acampamentos em Campolide, nos terrenos do moderno Bairro
Alto e em Alcântara, arrabaldes da capital. Formosa é que ela sempre
fora. Tinham-na os moiros pela mais linda das suas cidades, e tanto dela se encantaram
os cruzados, que levaram para Jerusalém a lembrança entusiástica da sua
peregrina beleza.
NOTA: A remota Alisubbo dos fenícios, a Olissipon
e a Felacitas
Julia dos romanos e visigodos, a Lissibona ou Aschbounah dos moiros, a Lisboa portuguesa e cristã, tinha
ocultas nas suas ruínas, embebidas nas muralhas e nas igrejas; ou sepultadas
nas suas próprias entranhas, lápides comemorativas, estátuas mutiladas, colunas
partidas, ídolos truncados, escombros de templos e de termas, que eram como ossadas
esparsas das maiores civilizações antigas, em dois mil anos de história! Mas
nos fins daquele assombroso século XV, ciclo épico da nossa raça, era bem a
soberba capital de um povo crente e forte, cujos destinos históricos já
começavam a encher o mundo.
In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico,
Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT