quarta-feira, 1 de maio de 2013

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina A. Cunha. «A participação da Milícia de Évora em Alarcos, em 1195, onde Gonçalo Viegas perdeu a vida, prova-nos que ela continuava a participar activamente na Reconquista, não só em território nacional, mas também no reino vizinho»

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«Cabe então perguntar que vantagens terá trazido à confraria dos freires de Évora o facto de Gonçalo Viegas, ex-pretor de Lisboa e, portanto, homem de confiança do rei, ter sido o seu primeiro mestre. Como explicar o (pelo menos aparente) desinteresse de Afonso Henriques e de seu filho por uma instituição fundada para o auxiliar? Tendo em conta o relacionamento do monarca com a Ordem de Santiago, não será lícito perguntar se a filiação da Milícia de Évora na Ordem de Calatrava não terá suscitado alguma reserva ao monarca?
Não pretendemos entrar aqui na polémica que envolve a filiação de Avis em Calatrava. Em termos práticos, em que é que ela se traduzia? No que respeita à Ordem portuguesa era-lhe permitido usufruir dos privilégios e isenções já concedidos a Calatrava e a Cister, por várias vezes os freires de Avis aproveitaram as prerrogativas concedidas para gozarem de determinadas isenções e daí a existência, no seu cartório, de várias bulas confirmativas dos privilégios dos cistercienses e dos freires de Calatrava, bem como estar presente, na pessoa do seu mestre, no capítulo calatravenho, nomeadamente quando se procedia à eleição da primeira dignidade da Ordem. Também podiam os cavaleiros portugueses recorrer ao capítulo ou ao mestre castelhano para resolver conflitos internos. Relativamente a Calatrava, a filiação de Avis permitia-lhe visitar regularmente os cavaleiros portugueses, visita que devia ser feita na companhia de um monge cisterciense, com vista a verificar se as normas da Regra eram ou não cumpridas, se a espiritualidade era devidamente preservada e se o património da Ordem era bem cuidado.
Para além destas visitas, o mestre de Calatrava ou um seu representante, escolhido em capítulo Geral, devia visitar o convento de Avis sempre que aqui se realizasse uma eleição do mestre, com vista a confirmá-lo. Nessa ocasião, os visitadores deviam receber a promessa de obediência por parte do recém-eleito, a quem davam o selo da Ordem. Temos provas de tal ter acontecido por diversas vezes ao longo da Idade Média. À partida, não haveria, pois, motivos para desconfiança, até porque a ingerência de Calatrava na milícia portuguesa era meramente funcional. Mas obedecendo os freires de Évora às directrizes de um mestre castelhano, não escapariam um pouco ao controlo régio? Ou, visto de um lado oposto, a filiação interessaria ao próprio Afonso Henriques que assim comprava a neutralidade de uma das forças ao serviço do rei castelhano? Estas questões, como tantas outras, permanecem em aberto.
Certo é que, no reinado do rei Sancho, para além dos castelos de Alpedriz e Juromenha, a Milícia de Évora vai receber o castelo de Mafra, em 1193, e provavelmente também Albufeira (referido na bula de 1199, o que leva a supor a participação dos cavaleiros eborenses na conquista de Silves, premiada com a doação do castelo). Em todas estas doações é expresso de uma forma clara que a milícia deveria servir fielmente o rei e os seus sucessores.
A participação da Milícia de Évora em Alarcos, em 1195, onde Gonçalo Viegas perdeu a vida, prova-nos que ela continuava a participar activamente na Reconquista, não só em território nacional, mas também no reino vizinho. Paralelamente, o seu património não terá parado de aumentar, embora paulatinamente. Assim se entende que a Bula de 1199, já referida, inclua nos bens que a Ordem de Calatrava possuía em Portugal outros para além dos já mencionados. No reinado de Afonso II, o prestígio granjeado pelos freires de Évora era já suficiente para particulares lhe fazerem doações e os seus bens em quantidade suficiente para gerar rendimentos que os cavaleiros aplicaram na compra de várias propriedades. Este rei, além de confirmar as doações dos seus antecessores, vai ser o autor do documento que terá sido talvez o mais importante outorgado aos freires até então. Referimo-nos à doação da zona de Avis, ocorrida em 1211, com a condição de os freires aí construírem um castelo e povoarem o lugar, o que havia sido já cumprido em 1215. Ora, não tendo sido o reinado de Afonso II caracterizado por iniciativas relacionadas com a reconquista de território aos muçulmanos, impõe-se questionar o porquê desta doação. Se a milícia de Évora se encontrava então em franca expansão, o mesmo não se poderá dizer de Calatrava (a que, não nos esqueçamos, os freires eboreses estavam ligados), que quase desapareceu no desastre e consequências de Alarcos. No avanço muçulmano então ocorrido, os calatravenhos perderam vários dos seus castelos, incluindo o de Calatrava, tendo-se refugiado em Salvaterra, onde lentamente, e apesar dos diferendos internos que então ocorreram, se procuraram reorganizar. É, pois, perfeitamente possível que Afonso II tivesse procurado inverter a relação que existia entre Calatrava e os freires eborenses, dotando estes de um forte bastião que pudesse vir a tornar-se a cabeça de uma Ordem que já detinha um património considerável.
A ter existido, esta pretensão de Afonso II não terá atingido o seu objectivo, talvez porque Calatrava recuperou forças durante o período que durou a construção do castelo de Avis. Seja como for, a já então denominada Ordem de Avis continua a merecer da parte do monarca todo o seu apoio, como o confirma a carta de protecção que este lhe outorgou em 1217. Não deixa, assim, de ser estranho que os freires de Avis tenham estado ausentes, nesse mesmo ano, na (re)conquista de Alcácer, onde participaram entre outros, os cavaleiros das Ordens Militares de Santiago, Templo e Hospital». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT