«Cabe então perguntar que
vantagens terá trazido à confraria dos freires de Évora o facto de Gonçalo
Viegas, ex-pretor de Lisboa e, portanto, homem de confiança do rei, ter sido o
seu primeiro mestre. Como explicar o (pelo menos aparente) desinteresse de Afonso
Henriques e de seu filho por uma instituição fundada para o auxiliar?
Tendo em conta o relacionamento do monarca com a Ordem de Santiago, não
será lícito perguntar se a filiação da Milícia de Évora na Ordem de
Calatrava não terá suscitado alguma reserva ao monarca?
Não pretendemos entrar
aqui na polémica que envolve a filiação de Avis em Calatrava. Em termos
práticos, em que é que ela se traduzia? No que respeita à Ordem portuguesa
era-lhe permitido usufruir dos privilégios e isenções já concedidos a Calatrava
e a Cister, por várias vezes os freires de Avis aproveitaram as
prerrogativas concedidas para gozarem de determinadas isenções e daí a
existência, no seu cartório, de várias bulas confirmativas dos privilégios dos
cistercienses e dos freires de Calatrava, bem como estar presente, na pessoa do
seu mestre, no capítulo calatravenho,
nomeadamente quando se procedia à eleição da primeira dignidade da Ordem.
Também podiam os cavaleiros portugueses recorrer ao capítulo ou ao mestre
castelhano para resolver conflitos internos. Relativamente a Calatrava, a filiação
de Avis permitia-lhe visitar regularmente os cavaleiros portugueses, visita
que devia ser feita na companhia de um monge cisterciense, com vista a
verificar se as normas da Regra eram
ou não cumpridas, se a espiritualidade era devidamente preservada e se o
património da Ordem era bem cuidado.
Para além destas visitas,
o mestre de Calatrava ou um seu representante, escolhido em capítulo Geral,
devia visitar o convento de Avis
sempre que aqui se realizasse uma eleição do mestre, com vista a confirmá-lo.
Nessa ocasião, os visitadores deviam receber a promessa de obediência por parte
do recém-eleito, a quem davam o selo da
Ordem. Temos provas de tal ter acontecido por diversas vezes ao longo da
Idade Média. À partida, não haveria, pois, motivos para desconfiança, até
porque a ingerência de
Calatrava na milícia portuguesa era meramente funcional. Mas obedecendo os
freires de Évora às directrizes de um mestre castelhano, não escapariam um pouco ao
controlo régio? Ou, visto de um lado oposto, a filiação interessaria ao
próprio Afonso Henriques que assim comprava
a neutralidade de uma das forças ao serviço do rei castelhano?
Estas questões, como tantas outras, permanecem em aberto.
Certo é que, no reinado
do rei Sancho, para além dos castelos de Alpedriz e Juromenha, a Milícia
de Évora vai receber o castelo de Mafra, em 1193, e provavelmente também Albufeira (referido na bula
de 1199, o que leva a supor a participação dos cavaleiros eborenses na
conquista de Silves, premiada com a doação do castelo). Em todas estas
doações é expresso de uma forma clara que a milícia deveria servir fielmente o
rei e os seus sucessores.
A participação da Milícia
de Évora em Alarcos, em 1195,
onde Gonçalo Viegas perdeu a vida, prova-nos que ela continuava a
participar activamente na Reconquista,
não só em território nacional, mas também no reino vizinho. Paralelamente, o seu
património não terá parado de aumentar, embora paulatinamente. Assim se entende
que a Bula de 1199, já referida, inclua nos bens que a Ordem de
Calatrava possuía em Portugal outros para além dos já mencionados. No reinado
de Afonso II, o prestígio granjeado pelos freires de Évora era já suficiente
para particulares lhe fazerem doações e os seus bens em quantidade suficiente
para gerar rendimentos que os cavaleiros aplicaram na compra de várias
propriedades. Este rei, além de confirmar as doações dos seus antecessores, vai
ser o autor do documento que terá sido talvez o mais importante outorgado aos
freires até então. Referimo-nos à doação da zona de Avis, ocorrida
em 1211, com a condição de os
freires aí construírem um castelo e povoarem o lugar, o que havia sido já
cumprido em 1215. Ora, não tendo
sido o reinado de Afonso II caracterizado por iniciativas relacionadas com a reconquista
de território aos muçulmanos, impõe-se questionar o porquê desta doação. Se a milícia
de Évora se encontrava então em franca expansão, o mesmo não se poderá
dizer de Calatrava (a que, não nos esqueçamos, os freires eboreses estavam
ligados), que quase desapareceu no desastre e consequências de Alarcos.
No avanço muçulmano então ocorrido, os calatravenhos
perderam vários dos seus castelos, incluindo o de Calatrava, tendo-se
refugiado em Salvaterra, onde lentamente, e apesar dos diferendos
internos que então ocorreram, se procuraram reorganizar. É, pois, perfeitamente
possível que Afonso II tivesse procurado inverter a relação que existia entre Calatrava
e os freires eborenses, dotando estes de um forte bastião que pudesse vir a
tornar-se a cabeça de uma Ordem que já detinha um património considerável.
A ter existido, esta pretensão de Afonso II não terá atingido o seu
objectivo, talvez porque Calatrava recuperou forças durante o período que durou a construção do castelo
de Avis. Seja como for, a já então denominada Ordem de Avis continua a merecer da parte do monarca todo o
seu apoio, como o confirma a carta de protecção que este lhe outorgou em 1217. Não deixa, assim, de ser estranho
que os freires de Avis tenham estado ausentes, nesse mesmo ano, na (re)conquista
de Alcácer, onde participaram entre outros, os cavaleiros das Ordens
Militares de Santiago, Templo e Hospital». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos
sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital,
Porto, 2009.
Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT