João II e o duque de Viseu
Setúbal, 28 de Agosto de 1484
«Esta pacífica vila vive horas de terror e espanto! As portas estão
cerradas e mui bem guardadas, lêem-se grandes e temerosos pregões na praça
pública, os ginetes da guarda de el-rei andam a percorrer os caminhos em várias
diligências, e há ordem de prisão contra muitas pessoas da primeira nobreza do
reino. É que foi descoberta nova conjura contra a vida do rei nosso Senhor, da
qual eram cabeças Garcia Menezes, bispo de Évora, e o senhor Diogo,
duque de Viseu. Daí as buscas e prisões ordenadas e a justiça que esta noite
foi feita na pessoa do jovem e desventurado irmão da rainha D. Leonor. Narremos
o que, sobre estes tristes factos, conseguimos apurar.
A sentença, que em Évora se executou, degolando Fernando, duque
de Bragança, parece que devia ser servido de aviso a todos os fidalgos
irrequietos e ambiciosos que guardassem ainda qualquer animadversão contra o
seu rei. Foi, nessa ocasião, paternalmente admoestado o duque de Viseu, a quem
Sua Alteza tanto queria, e contra quem não procedeu com mais rigor pelo amor e
respeito que dedica à rainha sua esposa. Mas nem o temor do cutelo nem a
suavidade dos conselhos desarmaram completamente aqueles maus portugueses, que
continuaram a alimentar abominável sanha contra el-rei e a congeminar o crime horroroso
de lhe tirar a vida. Começou a ser planeada a nova conjura quando a corte se trasladou
a Santarém.
Instalou-se o duque de Viseu na casa do arcebispo de Lisboa, junto ao
mosteiro de S. Domingos das Donas, já fora da cerca da cidade. O bispo de
Évora, Garcia, poisou nas casas de um tal Afonso Caldeira, junto
ao postigo de Santo Estêvão. Este prelado, que, por suas letras, fidalguia e
haveres, deveria ser o primeiro a dar o exemplo de vassalo obediente, concebeu
tal rancor contra el-rei que foi ele o instigador e mau conselheiro de toda
esta negra trama. Saía ocultamente, pelo postigo junto às casas onde habitava,
e ia procurar o duque para lhe instilar, no espírito vaidoso e inconsiderado, a
peçonha da sua maldade. Cativou-o fazendo-lhe entrever que, uma vez morto
el-rei João, ele, duque, seria alçado a governar. A ambição de ser rei turvou
completamente o coração do duque de Viseu, e assim é que dentro em pouco, aos
dois conspiradores se juntavam Fernando Meneses, irmão do bispo, Fernão
Silveira, escrivão da puridade de el-rei e filho do barão de Alvito, Guterrez
Coutinho, filho do marechal, a quem el-rei havia dado a comenda de
Sesimbra, Álvaro Ataíde, irmão do conde de Atouguia e do prior do Crato,
e seu filho Pedro Ataíde, o conde de Penamacor, Lopo Albuquerque
e Pero Albuquerque, seu irmão, alcaide-mor do Sabugal, e outros
fidalgos.
Como se vê, era vasta a conspiração e abrangia pessoas da mais alta hierarquia.
Apesar disso andava tão bem urdida que só tarde Sua Alteza o rei veio a tomar
conhecimento dela. Soube-o, segundo aqui se afirma, por denúncia de Diogo
Tinoco, irmão de Margarida Tinoco, manceba do bispo de Évora, a quem este, pelo visto, confiava os
seus maiores segredos. Tinoco foi, primeiro, dar parte da conjura a Antão
Faria, para que informasse o monarca do que se passava; mas, depois,
procurou avistar-se com el-rei e falou-lhe directamente, no convento de S.
Francisco, desta vila, porém, vestido de
frade, para maior dissimulação. Parece que Sua Alteza lhe agradeceu muito o
recado e lhe mandou dar 5000 cruzados em
ouro e uma renda vitalícia, paga de tão grande serviço». In
Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins
Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva,
1938.
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