A corte de Borgonha
«(…) A residência ducal abriga o pessoal político e
o pessoal doméstico ligados à Casa. Entre os primeiros encontram-se o
chanceler, os membros do Conselho, os camareiros, os oficiais de justiça, os
contabilistas, os grandes oficiais, secretários, escrivães, ocupando-se das
diferentes funções da administração sob supervisão do duque. A Casa divide-se
por três Serviços: A Capela, a Câmara e o Palácio (Hôtel). O serviço de Capela ocupa 40
pessoas, incluído o confessor do duque e os capelães, a que se junta uma
importante secção musical. Compete ao Serviço da Câmara, com o primeiro
camareiro à frente, presidir ao Conselho de guerra. Sob as ordens de Filipe,
Antoine de Croy foi primeiro camareiro durante muito tempo. Ele possui a
chave do quarto do duque e os aposentos de ambos são contíguos. Dezasseis
escudeiros dormem por perto enquanto vários despenseiros assistem o duque e
asseguram o arranjo dos espaços. É preciso ainda juntar, ao sector da saúde,
seis médicos, quatro cirurgiões e boticários. Finalmente, o guarda das jóias e das
economias do duque. Os primeiros, durante as refeições, inteiram o duque da
qualidade das carnes e das iguarias. O Serviço Residencial é o mais importante,
tendo a chefiá-lo um mordomo que participa nos conselhos ducais e dirige outros
subalternos. Ele tem sob sua direcção todo o pessoal que se ocupa do palácio, os
diversos furriéis, os serviços de boca, distribuidores do pão, copeiros,
cozinheiros e talhantes, e de corpo do príncipe. Este último agrupa um leque de
pessoal mais vasto, sob a direcção de um grande escudeiro, que é portador do
estandarte e da espada de parada do duque; mantém sob as suas ordens 60 escudeiros
e pajens de cavalariça tratadores de cavalos, palafreneiros, armeiros,
ferradores, cocheiros, postilhões, carroceiros. Têm a seu cargo as frequentes
deslocações do duque e da corte. A montaria e a falcoaria são dirigidas por
mestres, apoiados pelos chefes dos tratadores de cães.
A guarda de corpo do duque é constituída por seis
reis de armas e oito arautos; estes estão incumbidos de missões oficiais e de
espalhar proclamações, desafios e anúncios. Qualquer que seja a deslocação, o
duque é sempre escoltado por 62 archeiros envergando um paletó vistoso.
Cavalgando na frente dos cortejos vão jovens nobres, escudeiros, adornados com
ricos mantos ducais, em número que chega frequentemente aos 120. Filipe,
o Bom, devia inclinar-se perante o
rei de França, de quem era vassalo. Na sua própria corte fazia respeitar uma
etiqueta rigorosa aos numerosos servidores, porquanto, à parte a administração
de imensos territórios, essa mesma corte, poderosa, apoiava-se na guarda e no exército.
Entre os grandes pensionistas contava seis duques e 12 príncipes, marqueses e
condes, além de outros grandes aristocratas e cavaleiros. Havia audiências
públicas várias vezes por semana. Um Conselho especial ocupava-se da guerra. A
Câmara das Finanças tinha à testa o mestre da Chambre aux Deniers que era apoiada pelo guarda das jóias, o
primeiro camareiro que conservava a chave do tesouro. A organização da corte
repartia-se entre o mordomo-mor, os escudeiros, os médicos e os criados de
quarto. A Câmara heráldica era dirigida por seis reis de armas. O cerimonial
atrás esboçado contribuiu notavelmente para a eficácia da corte de Borgonha,
com as suas frequentes deslocações, o seu empenhamento nas festas, torneios, encontros
e capítulos do Tosão de Ouro, cada um
deles possuindo um ritual complementar. Isabel
de Portugal tinha uma personalidade muito afirmada e dirigia a casa ducal
com competência e grandeza. O duque atribuía-lhe todas as honras, embora
secretamente a enganasse, segundo um costume principesco largamente praticado
na época. O número dos seus bastardos excedia a dúzia: exerciam altas funções
administrativas, militares ou religiosas (dois bispos), e compunham uma parte
do círculo da corte. Tolerante quanto a esta estranha herança, associada à
sensualidade flamenga, Isabel não
deixou de censurar ao duque a infidelidade, fazendo-lhe sentir o seu sofrimento
moral.
NOTA: Filipe fez educar os seus filhos bastardos na corte,
junto de si. Corneille de Borgonha, senhor de Beures, morto na batalha de
Ruppelmonde; Jean de Borgonha, senhor de Elverdingue e soberano bailio de
Flandres, conselheiro e camareiro de Filipe, morto de armas na mão; Antoine,
filho de Jeanne de Presle, senhor de Beures e conde de La Roche, o mais
ilustre, foi feito cavaleiro do Tosão de Ouro em 1456 e participou numa expedição de socorro a Ceuta; David, bispo
de Thérouanne (1451) e de Ytrecht (1455); Filipe de Borgonha, senhor de
Sommerdie e de Blaton, almirante de Flandres e cavaleiro do Tosão de Ouro;
Raphael, dito de Marcatel, abade da abadia de Saint-Pierre d'Aldenbourg, depois
de Saint-Bavon de Gand; Jean, preboste de Saint-Omer ou de St. Donatien de
Bruges; Baudouin, nascido em 1445 de
Catherine de Thieffries, senhor de Fallais, de Bredan e de Zomeldie, genro de
Manuel de La Cerda. Jerónimo e Filipe morreram cedo. No que concerne às filhas
bastardas, há menos informação. Maria desposou Pierre de Bauffremont, senhor de
Charny, camareiro e cavaleiro do Tosão de Ouro; Ana casou-se sucessivamente com
Adrien de Borselle, senhor de Brigdam, depois com Adolphe de Clèves, senhor de
Ravenstein, príncipe de justadores e cavaleiro do Tosão de Ouro; Yolande foi
mulher de Jean d'Ailli, visconde de Amiens; Corneille casou-se com Adrien de
Toulongeon, senhor de Mornay; Maria de Borgonha entrou para um convento;
Catarina, a última, desposou o cavaleiro Hubert de Lurieu, senhor de La
Queille.
De facto, a duquesa obrigou-se a restabelecer a
etiqueta na corte de Borgonha, empenhando-se igualmente em restaurar os
costumes dos conventos, concertadamente com as abadessas. Esta rectidão moral,
tocando o puritanismo, foi mal aceite por Filipe, que se queixava do seu
carácter de suspeição. A educação do filho de ambos, Carlos, segundo certos
historiadores, teria guardado os traços de uma rigidez idêntica. Mas Isabel tinha no seu activo a divisa que
o duque estabelecera quando do casamento: Aultre n'auray, a qual não podia ser
desvalorizada sem que fosse ferido o seu orgulho». In Daniel Lacerda, Isabelle de
Portugal – duchesse de Bourgogne, Éditions Lanore, 2008, Isabel de Portugal,
Duquesa de Borgonha, Uma Mulher de Poder no coração da Europa Medieval,
tradução de Júlio Conrado, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-23-4374-9.
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