A Situação de Portugal após a Morte do Cardeal-rei
«(…) Durante o seu breve reinado, os males causados pelo desastre de Alcácer
Quibir agravaram-se precipitadamente. O cardeal-rei não revelou quaisquer qualidades
de estadista. Preocupado com o problema da sucessão, em que se guiou mais pelos
seus rancores pessoais do que pelos interesses superiores da grei, não entregou
de mão beijada Portugal a Filipe II, como exageradarnente alguns escritores
chegaram a afirmar; mas, tolhido por preconceitos de legitimidade e receios de
invasão, legou aos Governadores e Defensores do Reino, que previamente nomeara,
uma situação dúbia e confusa, que se transformou em poderosa arma em favor de
Castela. A louca aventura do rei Sebastião no Norte de África, desfalcando o
reino de inúmeros braços válidos, originou uma crise agrícola que em algumas
províncias atingiu a angustiosa situacão da fome. Decerto no simpático intuito
de incutir ânimo aos portugueses, a voz do Velho
Portugal mentiu deliberadamente ao anunciar que havia armamento de
sobejo para repelir uma agressão castelhana. Era falso.
O armamento existente mal chegava para dez mil soldados, e estes nem sequer
tinham oficiais que os comandassem. Em suma, não havia exército. Pior ainda:
não se dispunha de dinheiro, o nervo da guerra, para o improvisar. A fim de o
obter, chegou-se a pensar em vender as jóias e outros bens mobiliários da
Coroa. Os Governadores e Defensores do Reino, espécie de junta governativa de
cinco homens em que o cardeal-rei Henrique depositara cega confiança, já se encontravam
em sua maioria peitados em favor de Castela, pela acção corruptora de Cristóvão
de Moura. Eram eles:
- João Telo Meneses, o único intransigente adversário da dominação estrangeira;
- Jorge Almeida, arcebispo de Lisboa, que tentava frouxamente observar uma atitude de independência;
- e os restantes três, já francamente subornados, João Mascarenhas, Francisco Sá e Diogo Lopes Sousa.
O povo de então desconhecia em pormenor de que maneira torpe os seus Defensores se tinham vendido ao inimigo.
Eles simulavam patriotisrno e coloriam de prudência e humano horror a uma guerra
sangrenta os manejos com que favoreciam quem os comprara. A verdade, porém, é que,
nada sabendo de concreto, o povo guiado pela sua intuição acurada pela
iminência do perigo, suspeitava fortemrente dos Governadores. Contudo, não
havia contra eles as provas convincentes e abundantes que o decurso do tempo
viria a fornecer à história. Falecido o cardeal-monarca, entraram os Governadores
no imediato exercício das suas funções, que eram restritas, de harmonia com a
carta patente da sua nomeação, datada de 12 de Julho de 1579. Era-lhes vedado conceder títulos, comen'as ou tenças, cujo
rendimento fosse além de cinquenta mil réis; em caso de serviços relevant'es,
podiam passar alvarás de lembrança para o soberano que viesse a empunhar o
ceptro; também lhes era vedado prover muitos cargos, com excepção de emergência
de guerra ou alteração da ordem pública. Exercia a presidência cada um dos membros,
sucessivamentre, durante uma semana.
No momento em que o cardeal Henriqtle faleceu, achavam-se reunidas as
Cortes nas vilas de Santarém e Almeirim; naquela o braço popular, nesta a
nobreza e o clero.Eram umas Cortes muito incomodativas, sobretudo porque o
povo, cujas sessões decorriam no convento de São Francisco de Santarém, menos permeável
à corrupção castelhana, se manifestara abertamente hostil a qualquer acordo com
Filipe II, ao contrário do que já sucedera com a classe nobre que, mercê do trabalho
de sapa realizado pelos embaixadores espanhóis, votara o acordo pela maioria de
um voto!» In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação
Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
Cortesia de Romano Torres/JDACT