domingo, 5 de maio de 2013

Poesia. Antero de Quental. «Porque a noite é a imagem da Verdade, que está além das cousas transitorias. Das paixões e das formas ilusorias, onde somente ha dor e falsidade... Mas tu, radiante luz, luz gloriosa, de que és symbolo tu? Do eterno engano, que envolve o mundo e o coração humano em rede de mil malhas, mysteriosa!»

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Hino da Manhã
Tu, casta e alegre luz da madrugada,
sobe, cresce no céo, pura e vibrante,
e enche de força o coração triumphante
dos que ainda esperam, luz immaculada!

Mas a mim pões-me tu tristeza immensa
no desolado coração. Mais quero
a noite negra, irmã do desespero,
a noite solitaria, immovel, densa,

O vacuo mudo, onde astro não palpita,
nem ave canta, nem susurra o vento,
e adormece o proprio pensamento,
do que a luz matinal... a luz bemdita!

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
imagem do repouso inalteravel
e do esquecimento inviolavel,
que anceia o mundo, farto de soffrer...

Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
o nada universal o pensamento,
e despreza o viver e o seu tormento.
e olvida, como quem está já morto...

E, interrogando intrepido o Destino,
como reu o renega e o condemna,
e virando-se, fita em paz serena
o vacuo augusto, placido e divino...

Porque a noite é a imagem da Verdade,
que está além das cousas transitorias.
Das paixões e das formas ilusorias,
onde somente ha dor e falsidade...

Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
de que és symbolo tu? Do eterno engano,
que envolve o mundo e o coração humano
em rede de mil malhas, mysteriosa!

Symbolo, sim, da universal traição,
d'uma promessa sempre renovada
e sempre e eternamente perjurada,
tu, mãe da Vida e mãe da Ilusão...

Outros estendam para ti as mãos,
supplicantes, com fé, com esperança...
Ponham outros seu bem, sua confiança
nas promessas e a luz dos dias vãos...

Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
e que tortura ainda não provada
hoje me ensinará esta alvorada?
E digo. Porque nasce mais um dia?

Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! E o Universo
ficasse inerte e eternamente immerso
do possivel na nevoa duvidosa!

O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a consciencia,
d'uma eterna, incuravel impotencia,
do insaciavel desejo, que o devora!

De que são feitos os mais belos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? De ilusões, de dores,
de miserias, de maguas, de agonias!

O sol, inexoravel semeador,
sem jamais se cançar, percorre o espaço,
e em borbotões lhe jorram do regaço
as sementes innumeras da Dor!

Oh! como cresce, sob a luz ardente,
a seara maldita! Como treme
sob os ventos da vida e como geme
n'um susurro monotono e plangente!

E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
em ondas de cruel fecundidade,
com a força e a subtil tenacidade
invencivel das plantas venenosas!

De podridões antigas se alimenta,
da antiga podridão do chão fatal...
Uma fragrancia morbida, mortal
lhe reçuma da seiva peçonhenta...

E é esse aroma languido e profundo,
feito de seducções vagas, magneticas,
de ardor carnal e de attracções poeticas,
é esse aroma que envenena o mundo!

Como um clarim soando pelos montes,
a aurora acorda, placida e inflexivel,
as miserias da terra: e a hoste horrivel,
enchendo de clamor e horisontes.

Torva, cega, colerica, faminta,
surge mais uma vez e arma-se á pressa
para o bruto combate, que não cessa,
onde é vencida sempre e nunca extincta!

Quantos erguem n'esta hora, com esforço,
para a luz matinal as armas novas,
pedindo a lucta e as formidaveis provas,
alegres e crueis e sem remorso.

Que esta tarde ha-de ver, no duro chão
cahidos e sangrentos, vomitando
contra o céo, com o sangue miserando,
uma extrema e importante imprecação!

Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,
ha-de a noite encontrar, sós e encostados
a algum marco, chorando aniquilados
as lagrimas caladas dos vencidos!

E porque? Para que? Para que os chamas,
serena luz, ó luz inexoravel,
à vida incerta e á lucta inexpiavel,
com as falsas visões, com que os inflamas?

Para serem o brinco d'um só dia
na mão indifferente do Destino...
Clarão de fogo-fatuo repentino,
cruzando entre o nascer e a agonia...

Para serem, no páramo enfadonho,
à luz de astros malignos e enganosos,
como um bando de espectros lastimosos,
como sombras correndo atraz d'um sonho...

Oh! não! luz gloriosa e triumphante!
Sacode embora o encanto e as seducções,
sobre mim, do teu manto de ilusões:
a meus olhos, és triste e vacilante...

A meus olhos, és baça e luctuosa
e amarga ao coração, ó luz do dia,
como tocha esquecida que alumia
vagamente uma crypta monstruosa...

Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
me envolves, me penetras, com amor...
Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
e não te posso amar - não quero amar-te!

Symbolo da Mentira universal,
da apparencia das cousas fugitivas,
que esconde, nas moventes perspectivas,
sob o eterno sorriso o eterno Mal.

Symbolo da Ilusão, que do infinito
fez surgir o Universo, já marcado
para a dor, para o mal, para o peccado,
symbolo da existencia, sê maldito!

Antero de Quental

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