«Não derivam os torres das igrejas com os seus sinos cristãos das almenaras
ou minaretes das mesquitas? A dízima eclesiástica surgiu na Península decalcado
sobre a esmola legal do Islão. Os alcaides, os alvazis, os almoxarifes do
governo municipal mergulham o sua existência na sua vida urbana. De lá vinham
os morabitinos e os maravedis. De lá veio a organização administrativa central
e militar da monarquia lusa com os seus alferes, os seus alardos e o pagamento
do serviço dos nobres em maravedis. Mas como seria isso possível com o
extermínio e a fuga maciça dos quadros muçulmanos?
A voz apostólica-romana dos vencedores apagou as marcas dos vencidos
mas os seus ecos continuam a chegar até nós. Escrevo isto em sinal do meu
sofrimento... o alarife muçulmano da
Sé Velha de Coimbra aprendeu depressa o românico que soprava de Cluny.... Almutádide
de Sevilha ufana-se ainda de ter mandado erguer a dionísina torre de
menagem do castelo de Moura. A igreja de Arronches confessa: Mouro me fez. Duarte de Armas inscreveu
sobre os muros desenhados de Mértola: Esta
igreja foi mesquita. Osberno declarou que a mesquita de Lisboa de sete
naves foi transformada em catedral. Por sua vez rios, montes, povoados,
enquanto não os baptizarem com um nome respeitável, continuarão a cantar
mourisco: Odelouca, Odeceixe,
Odivelas, Odiana, Almançor, Alfaqueques, Bensafrim...
Ibne Cací ou Ibne Almúndir exemplificam a situação étnica
e ideológica do Garbe do Andaluz no século XII. Profeta ou mádi, chefe da
seita dos dos muridines, Ibne Cací dominou quase todo o Garbe ou Ocidente
e os seus partidários espalharam-se por Sevilha, Córdova e o Andaluz. Ora este
profeta muçulmano, cujo único manuscrito subsistente aguarda publicação nos esconsos
de uma biblioteca de Constantinopla, é caracterizado por Ibne Alabar
como moçárabe.
Não se pretende impugnar o significado corrente de moçárabe: cristão
que se acomoda sob o domínio do Islão; ou o de maula, aqui, hispano-cristão que
vira muçulmano. Não se intenta tão-pouco contradizer Ibne Alabor. O
espantoso está no facto de Ibne Cací se impor como profeta apesar de
muçulmano de fresca data. Sem um forte apoio étnico da população do Andaluz seria
possível que o ex-moçárabe Ibne Cací e o maula Ibne Almúndir,
hispanos ambos, se tornassem dirigentes supremos do Garbe? Nas vésperas da queda de Santarém e de Lisboa, a Crónica dos Godos confirmada por outras fontes,
considera apenas duas camados de população no Andaluz os ismaelitas que se
haviam sublevada contra os moabitas, isto
é, andaluzes contra árabes. Frente aos berberes almorávidas erguia-se a unidade
andaluza argamassa étnica em que se fundiam hispanos e árabes e berberes de há
muito radicados em sola peninsular». In António Borges Coelho, Portugal na
Espanha Árabe, História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1989, ISBN
972-21-0402-0.
Cortesia de Caminho/JDACT