Ha relâmpagos de memoria
que abrem um vinco na fronte do homem. E a velhice extemporânea de alguns o que
é se não recordarem-se? In Camilo Castelo Branco, A Enjeitada.
«Quanto à primeira
mulher de Camilo Castelo Branco não serão para desprezar as informações
novas, que hoje trago a lume, absolutamente inéditas. Mas careço de evocar
algumas passagens concernentes ao mesmo assunto, que se encontram em duas ou
três obras minhas, e faço-o por amor da sequência lógica desta breve narrativa.
O grande romancista ocultou sistematicamente o facto de ter contraído primeiras
núpcias com uma camponesa residente em Friúme, e parece que chegou a negá-lo,
segundo uma referência insuspeita de António de Azevedo Castelo Branco em carta
dirigida ao visconde de S. Miguel de Seide.
Pelo
menos, ocultá-lo em documentos oficiais correspondia a negá-lo. Assim, quando
em Outubro de 1846 entrou na cadeia
do Porto por haver raptado D. Patrícia Emília do Carmo, fez-se inscrever como
solteiro, sendo ainda viva a sua primeira mulher. E quando em 1852 se habilitou naquela mesma cidade
para tomar ordens menores, o que não efectivou, omitiu na petição ao bispo o estado de viúvo.
Mas, no respectivo
processo eclesiástico, o abade da Sé, atestando pro moribus, declara ser o peticionário viuvo de D.
Joaquina Pereira de França. Nunca uma aldeã foi mais digna de a honorificarem
Dona. Tinha conhecimento daqueles autos de ordens o ilustre cónego Alves
Mendes, amigo desvelado de Camilo, e, por isso, quando em 1885 começou dedicadamente a promover o
casamento do insigne escritor com D. Ana Plácido, para conseguir a
dispensa de proclamas solicitou, perante o arcebispo de Braga, uma justificação
legal do falecimento de D. Joaquina Pereira França.
Foi o mesmo cónego Alves
Mendes quem me comunicou todos estes pormenores, que mais tarde comprovou com a
oferta de documentos, por mim publicados em 1890 no Romance do romancista.
Camilo
nunca revelou aos seus íntimos, nem em qualquer dos seus livros, tão ricos de
dados autobiográficos, referiu, clara e directamente, a história do seu
primeiro casamento. Mas eu surpreendi, em algumas das suas obras, insistentes
impressões que ele guardara desde Friúme e que propositadamente
desfigurava quanto às personagens principalmente. Camilo contou, sem nenhum
disfarce, os seus idílios amorosos com duas camponesas da Samardan. Luísa,
donairosa flor dentre as fragas, e Maria do Adro, a triste e pálida aldeã.
Então por que se
obstinaria em ocultar, ou renegar, o
seu consórcio com outra camponesa? Por isso mesmo que a desposou,
fazendo um casamento obscuro, cuja confissão pareceria desairosa às suas
tendências aristocráticas, à sua culminância literária e evidência social, que
depois tão justificadamente conquistou. Não se esquivara Camilo a comemorar
publicamente os galanteios serranos, que não tinham chegado a criar uma
situação doméstica, a estabelecer laços de família, a autorizar a vida em comum
que o casamento sanciona.
Mas dir-se-ia envergonhado da afeição que o levara ao matrimónio como
se fora qualquer dos seus brasileiros que, regressando à terra natal, houvesse desposado
a filha do feitor, rapariga tão apetitosa quanto humilde. Camilo receava até a
possibilidade de se falar nisso, consoante disse António de Azevedo na carta já
citada. Quando, tendo-me pedido informações sobre o trabalho da sua biografia,
eu lhe confessei lealmente no Hotel Borges, em Lisboa, que possuía uma
certidão do seu primeiro casamento, Camilo retorquiu-me, excitado: - Esse casamento foi uma infâmia. A isto
respondi eu com a mesma lealdade: - Tenho provas de que foi apenas a
consequência duma criancice aos dezasseis anos. Mas essa criancice, que
teve uma sanção honrosa, e que, portanto, não podia nem devia envergonhar Camilo: essa legalizada aventura
primaveril, que ele tanto queria recatar no maior sigilo, muitas vezes a
recordou intimamente com secreta saudade, sem todavia a querer confessar
francamente.
Espero demonstrá-lo
nesta monografia, cujo plano comportará, primeiro, o que já escrevi sobre o
mesmo assunto no Romance do romancista,
nos Amores de Camilo e no prefácio da
sua comédia póstuma O Lubis-homem;
depois, as minhas pesquisas recentes, quanto à família de D. Joaquina Pereira França: por último, o estudo psicológico
das páginas que melhor traduzem as recordações saudosas do eminente escritor, sempre
veladas num injustificado mistério de alma». In Alberto Pimentel, A Primeira
Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª -
Editores, Lisboa, 1916.
Cortesia de Guimarães Editores/JDACT