Exame
Pode
pode sentar-se senhora
Eu não sou senhora eu não sou menina
sem olhos sem ouvidos fala
sento-me que de pé sou um balão vazio
pois sento-me embora haja frio
e calor na sala
harpias de esquecimento
riscos na carteira
e a ciência inteira casqueando ideias
puzzles legiões de ideias
que são novas velhas
Sento-me
evidentemente
circunspectamente
irremediavelmente
senhor professor doutor
Eu não sou senhor professor doutor
minha não-senhora minha não-menina
e se estou de pé é ilusão de óptica
eu estou sentado todos nós sentados
isto é não rígidos não equilibrados.
De certo que é isso que o senhor me diz
ao princípio é mundo
ao princípio é deus
ao princípio é homem
ao princípio é fim.
Passam aviões o céu está vermelho
que será de mim
artista batido
persiana branca
uma mulher nua
perdição do homem
ao princípio é ela
e depois sou eu.
Já sabem que o outro era esse mesmo
construiu um vácuo e deitou-se a esmo
de cabeça ao caos
os homens são maus
não são não senhor pode ser que seja
apenas temor
o que é é pode ser que seja
apenas não ser
pleno é vazio
sei lá que é pleno
sei lá que é vazio
pode ser plano pode ser navio
sei lá que é destino dão-lhe muitos nomes
um só lhe convém
as árvores cortam o meu pensamento
o tinteiro tem qualquer sangue dentro
mas no homem não há tinta livre
fácil liberdade
há facilidade
há atrocidade
são palavras válidas colhidas no vento
sim professor senhor professor doutor.
Estou de pé dentro nem de alma alguma
cinzeiro de cinza cindida
não vale a pena dizer que me sinto
homogéneo átomo
como um voo sem asas.
Aflito esquisito heraclito
não grito dizem que é feio um homem gritar
mas eu sou mulher
já me esquecia eu não sou mulher
de análise psíquica
quid emocional
não olhem para mim
a voz perdeu-se
a voz encontrou-se
nada é por mal
e mais
se não fosse estrada das mil direcções
era um verme triste
um cão acossado
o qual possuía uma biblioteca
eu também algures uma discoteca
sem caos sem destino que vai ser de nós.
Meu amor vivias muito antes de Cristo
não percebo isto
a morte que é vida
a terra redonda o barco na onda
cai um grão de pó em cada demora
senhor professor doutor
senhor professor
senhor
se
Já passa da hora.
Poema de Luísa Neto Jorge, in 1939-1989
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