terça-feira, 4 de junho de 2013

BNP. Eduardo Lourenço. Um Tempo e as suas Cinzas. Mostra. «De uma forma misteriosa para mim mesmo o caos de todos estes anos lidos foi-se organizando e agora o tumulto das coisas, das ideias, dos acontecimentos, das opiniões e dos valores…»


Cortesia de bnp

 

Mostra. Até ao pf dia 13 de Julho de 2013. Na Sala de Referência
Conferência: Eduardo Lourenço. Uma escrita desperta, com a presença de Mário Soares e Gonçalo M. Tavares. Amanhã, dia 5 de Junho de 2013. Pelas 16h30.

Coimbra 13-9-53
«Tudo quanto toquei me formou e deformou. Como um búzio desejei guardar o mar dentro de mim. De todas as experiências, a que me marcou mais fundo foi a literatura. Nunca fui leitor de um só livro. Isto não é um elogio. É uma verificação e uma melancolia. Seria impossível para mim mesmo estabelecer qualquer hierarquia entre as influências sofridas. Foram inumeráveis, constantes e contraditórias. Durante muitos anos pensei que isso me incapacitasse para chegar a ver claro, e por mim mesmo, o fundo das questões que importam na vida. Tive medo que se cumprisse o vaticínio da cristã fervorosa e simples que era minha mãe: leste tanto que tresleste. Nem ela sabia até que ponto a sua lucidez materna acertava no alvo. Creio que, apesar de tudo, no fundo do seu coração, não o acreditava. Eu debatia-me numa torrente onde nenhum amor me podia socorrer. Apesar disso nunca perdi a esperança de encontrar uma saída para a confusão e o tumulto desse mundo escrito que pouco a pouco trocara pelo mundo real.
Seria cego se pensasse que encontrei por fim essa saída. Todavia já não me sinto perdido como sentia. De uma forma misteriosa para mim mesmo o caos de todos estes anos lidos foi-se organizando e agora o tumulto das coisas, das ideias, dos acontecimentos, das opiniões e dos valores, em vez de me arrastar após si, permanece em frente do meu espírito. Posso tocá-lo, compará-lo, colocá-lo aqui e ali, pondo à distância. Em suma, pareço um pouco mais o dono dele e posso apascentá-lo como o incomparável Caeiro ao rebanho dos seus pensamentos.
O que se passou ao longo destes anos da minha educação foi talvez mais simples do que eu imaginara. Falei de influências e nada mais exacto. A verdade é um pouco diferente. Fui durante muitos anos, na infância e na adolescência, uma argila moldável mas nunca me assemelhei à cera. O fogo endureceu-me, não me dissolveu. O meu inimigo mortal, cedo o suspeitei, foi o amor. Ele me destruiu antes que a vida, com o seu tormento misericordioso, me tocasse. Sem os livros onde se ama e se é amado por procuração, o meu destino teria sido o da estátua de sal, com o deserto de amor à minha volta. Com os livros foi o de um labirinto atapetado de olhares familiares que, como nos sonhos, piedosamente me assassinam». In Eduardo Lourenço

In BNP, Mostra, Conferência: Eduardo Lourenço. Uma escrita desperta.

Cortesia de BNP/JDACT