Cortesia de bnp
Mostra. Até ao pf dia 13
de Julho de 2013. Na Sala de Referência
Conferência: Eduardo Lourenço. Uma escrita desperta,
com a
presença de Mário Soares e Gonçalo M. Tavares. Amanhã, dia 5 de Junho
de 2013. Pelas 16h30.
Coimbra 13-9-53
«Tudo quanto toquei me formou e deformou. Como um búzio desejei guardar
o mar dentro de mim. De todas as experiências, a que me marcou mais fundo foi a
literatura. Nunca fui leitor de um só livro. Isto não é um elogio. É uma
verificação e uma melancolia. Seria impossível para mim mesmo estabelecer
qualquer hierarquia entre as influências sofridas. Foram inumeráveis,
constantes e contraditórias. Durante muitos anos pensei que isso me
incapacitasse para chegar a ver claro, e por mim mesmo, o fundo das questões
que importam na vida. Tive medo que se cumprisse o vaticínio da cristã fervorosa
e simples que era minha mãe: leste tanto que tresleste. Nem ela
sabia até que ponto a sua lucidez materna acertava no alvo. Creio que, apesar
de tudo, no fundo do seu coração, não o acreditava. Eu debatia-me numa torrente
onde nenhum amor me podia socorrer. Apesar disso nunca perdi a esperança de
encontrar uma saída para a confusão e o tumulto desse mundo escrito que pouco a
pouco trocara pelo mundo real.
Seria cego se pensasse que encontrei por fim essa saída. Todavia já não
me sinto perdido como sentia. De uma forma misteriosa para mim mesmo o caos de
todos estes anos lidos foi-se organizando e agora o tumulto das coisas, das
ideias, dos acontecimentos, das opiniões e dos valores, em vez de me arrastar
após si, permanece em frente do meu espírito. Posso tocá-lo, compará-lo,
colocá-lo aqui e ali, pondo à distância. Em suma, pareço um pouco mais o dono
dele e posso apascentá-lo como o incomparável Caeiro ao rebanho dos
seus pensamentos.
O que se passou ao longo destes anos da minha educação foi talvez mais
simples do que eu imaginara. Falei de influências e nada mais exacto. A verdade
é um pouco diferente. Fui durante muitos anos, na infância e na adolescência,
uma argila moldável mas nunca me assemelhei à cera. O fogo endureceu-me, não me
dissolveu. O meu inimigo mortal, cedo o suspeitei, foi o amor. Ele me destruiu
antes que a vida, com o seu tormento misericordioso, me tocasse. Sem os livros
onde se ama e se é amado por procuração, o meu destino teria sido o da estátua
de sal, com o deserto de amor à minha volta. Com os livros foi o de um
labirinto atapetado de olhares familiares que, como nos sonhos, piedosamente me
assassinam». In Eduardo Lourenço
In BNP, Mostra,
Conferência:
Eduardo Lourenço. Uma escrita
desperta.
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