A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) O Infante foi avisado. Agora só faltava o acto final mas, antes, a
noite de Coimbra e o juramento solene perante Deus da morte concertada, a dele
e a do Avranches. O Infante era um homem aparentemente calmo, mas de sanhas
súbitas se se enervava em extremo, melancólico, mas capaz de um riso alegre se
estava entre amigos e confiava. Sensível, se perdia a cabeça, assomavam-lhe as
lágrimas aos olhos e erguia os braços ao Céu, invocando Deus, dando enormes
passadas pela sala até se acalmar. Em Coimbra estava como preso. Residência
fixa significava uma forma de prisão. Não podia, sem autorização expressa e
escrita, abandonar Coimbra. O Rei iria
encontrar-se com ele? Ele ira ter com o Rei.
Aqui esconde-se todo o segredo do Regente. Ele iria ter com o Rei, em serviço
de Deus e do Rei, e para paz e sossego
do Reino. Portanto ele, no dia 5 de Maio, partiu para ir esperar os seus
inimigos no campo e pedir a Deus e a El Rei justiça e vingança deles como de
quem tão sem-razão, tanto dano e perda me tem feito. Dixit.
Claro que ele o fez propositadamente. Aconselharam-no a não sair de Coimbra
Álvaro Afonso, Martim de Távora, João de Lisboa, Diogo Afonso, Pedro de Ataíde
e até o seu querido Aires Gomes Silva, entre outros, embora este último estivesse
indeciso. Só Álvaro Almada estava, desde o início, com ele. De resto, Pedro recolheu-se na sua câmara com o
conde e confessou-lhe que estava farto de viver. Não valia a pena, de resto,
viver mais nas condições que o destino agora lhe ditava. Ia fazer a viagem para
o encontro com o Rei, mas se as coisas não sucedessem como desejava, eu todavia determino morrer e acabar
inteiro e não em pedaços. O último grito do HOMEM, o assomo supremo
da sua dignidade ofendida. Antes a morte que a desonra e o sonho perdido,
desfeito, em pedaços. O conde de
Avranches compreendeu e aceitou. Em certa medida devia já, esperar aquela
conclusão. O Infante mandou chamar Álvaro Afonso, clérigo, confessou-lhe o
entendimento que ele e o Avranches tinham combinado e pediu o santo sacramento
para os dois. O clérigo rogou-lhes que o não fizessem, mas não sei se compreendeu
que aqueles dois homens estavam apenas a cumprir um juramento feito muito tempo
antes, e sagrado, quando tinham sofrido a iniciação que os fizera irmãos em
espírito perante o Supremo Juiz. E rezaram. E choraram os dois, e na vigília
daquelas horas sagradas talvez tenham compreendido que agora tudo o que
acontecesse seria indiferente, porque o seu destino também já não lhes pertencia.
O Infante, no entanto, ainda arregimentou os homens e partiu.
Há quem diga que por teimosia, por engano, por raiva, por orgulho... Talvez,
apesar de tudo, lhe restasse alguma esperança... Há sempre esperança mas agora
já, nada o poderia fazer voltar para trás. Se o seu destino se consumasse pela
espada, ele iria consumar-se, sim, pela mão dos seus inimigos. Então, que o destruíssem! O homem que
vira com seus olhos cor do céu a Jerusalém terrestre, por cujas calçadas de
larga pedra calcorreara Jesus antes de ser pregado no madeiro do Gólgota, sabia
quanto a vida era efémera, não receava a morte. Não. Mas os seus inimigos,
que tanto tinham porfiado por ela, que a cumprissem e que o seu sangue caísse
sobre si e os seus descendentes. Ele, ao menos, tinha ainda o poder de escolher
o local e a hora! O último acto ainda lhe pertencia e isso nem os Braganças, nem
o pueril sobrinho jamais poderiam compreender ou impedir. Ele não andava
exilado por terras estranhas, ele, que fora recebido em toda a Europa como um
Príncipe, um quase chefe de Estado, que o Imperador Segismundo tratava como
igual e que fora marquês de Treviso, capital
da Marca Trevisana! Ele que sonhara, mirando as cúpulas do Templo, o
Santo Sepulcro e se recolhera à sombra bendita de Sion! Ele que fora romeiro em
Jerusalém e grande senhor em Veneza donde trouxera para o irmão Henrique o livro
de Marco Polo oferecido pela Senhoria, ele, o primeiro homem do novo
século que traduzira do latim Cícero e
Vegécio, que aprendera com Colonna os princípios básicos do novo
programa político para as modernas monarquias da Europa! Ele que era filho, neto,
bisneto, até à fundação herdeiro de Reis, tio, primo, sobrinho e pai de Reis, e
que tivera o direito ao trono de Aragão e ao grande sonho do Império Ibérico!
Ele era o senhor de si mesmo e a sua alma, agora desfeito o sonho, só a Deus
pertenceria!
Em Coimbra, D. Isabel ficou, de joelhos, no oratório, os olhos
presos à imagem de madeira de uma velha Virgem que trouxera das cercanias de
Monserrate. Sem esperança, contudo. É pouco provável que, nesse instante,
acreditasse, apesar da sua forte fé cristã, num milagre. Conhecia o marido e o
ousado Avranches, mais velho que ele, mais experiente, mas mais
temível ainda. Este estivera em Ceuta, na Inglaterra, combatera em França, na
guerra, contra os Franceses, fora feito conde por Henrique VI, com a pensão
anual de cem marcos, e Cavaleiro da Jarreteira tal como o rei inglês o
fizera com Pedro. Com Pedro lutou contra os Turcos ao lado do
Imperador Segismundo e regressou a Portugal. Em 1437 estava em Tânger... e caminhava ao lado de Pedro, impassível, como se tudo já
estivesse consumado e nem Deus e o Diabo o pudessem impedir de coisa alguma. Não
era um louco suicídio mas um firme acto de liberdade. Hoje compreendo-o melhor que ninguém.
Recordava-se de uma noite Álvaro dizer, encostado à pedra da grande
lareira, durante um serão de Inverno, um pequeno poema de um autor francês. E
dissera-o como se fosse ele o criador das frases, tivesse sido ele a pensá-lo e
a exprimir-se, quase em surdina, como se falasse consigo próprio:
Tout leèsse deffaut
Tout coeurs ont prins
par assaut
Tristesse et merencolie
Ela sabia que era verdade. Com o tempo e as vicissitudes da vida toda a
alegria se esfuma, todos os corações são assaltados pelo temporal do destino,
pela tristeza e pela melancolia. Olhando, compungida, aquela belíssima imagem
da Anunciação aos Pastores, toda em ouros e azuis do Livro de Horas que
abrira, ao acaso, depois de se erguer e se recostar no alto leito que, adivinhava, não mais compartilharia com
o marido». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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