«(…) Tal como acontecia
em outras instituições monásticas coevas, pelo menos a Ordem de Avis e a Ordem do Hospital tinham no seu
seio, para além dos freires, leigos que, não tendo professado,
aderiam às milícias, a quem davam todos os seus bens em troca de protecção
material e benefícios espirituais: no caso de Avis, a prática de receber estes familiares prolongou-se
pelo menos até ao século XIV; os hospitalários chamavam donatos a estes
particulares leigos que procuravam junto da Ordem subsistência e protecção
espiritual. Mas mesmo dentro deste sub-grupo
havia diferenças, conforme a situação do leigo no momento em que fazia a sua donatio ao Hospital:
assim, uns doavam in forma communi,
isto é, entregavam bens antes de entrarem para a Ordem, ao mesmo tempo que
cumpriam um período probatório. Diferentes destes eram os que tinham feito a donatio sub condicione, que eram
recebidos como capelães, embora não tivessem ainda recebido a totalidade das
Ordens sacras. Finalmente, havia ainda leigos que, por morte, deixavam os seus
bens ao Hospital, recebendo em troca o hábito da Ordem e a permissão de serem sepultados
nos cemitérios desta.
Se excluirmos as normas
relativas aos rituais, nomeadamente de profissão e ingresso nas Ordens,
desconhecemos como viviam os freires nos primórdios destas instituições
de vocação religioso-militar. É, no entanto, de supor que a coexistência, a
nível institucional, entre clérigos e cavaleiros não fosse fácil, não só
porque os seus interesses eram basicamente diferentes, mas também devido à
importância do seu estatuto no seio das milícias e à distribuição do
património. Em Portugal, este estudo está ainda por fazer para a generalidade
das Ordens nos séculos XII e XIII. No país vizinho, são conhecidos, por
exemplo, os conflitos que cedo, primeira década do século XIII, estalaram
entre os espatários e o prior-mor de Uclés.
Porque de instituições religiosas
se tratavam, qualquer freire que professasse numa Ordem Militar
formulava, no momento da sua adesão, três votos: pobreza, castidade
e obediência.
Estes conselhos evangélicos não eram exclusivos das milícias, mas adquiriam
nestas um significado ligeiramente diferente do que se verifica nas restantes
comunidades religiosas. O voto de obediência
era naturalmente da maior importância dada a organização militar da
instituição. Logo aquando da profissão, este dever era transmitido ao novo membro,
procurando garantir a disciplina dentro da comunidade. Na Ordem do Hospital
era exigida uma obediência total ao grão-mestre, o mesmo acontecendo em Santiago
e em Calatrava, consequentemente, em Avis. Nesta última, a
desobediência ao mestre era castigada com a suspensão do uso das armas e do
cavalo durante seis meses, pena tanto mais pesada se pensarmos que
ambos eram essenciais à função de um cavaleiro. Todos os freires estavam
obrigados ao mesmo dever de obediência relativamente ao comendador-mor, no caso de Avis, e
ao prior-mor, em Santiago.
O voto de castidade
foi imposto por Cister a Calatrava logo em 1164. A infracção a este preceito seria duramente punida, já que
além da destituição do(s) cargo(s) que ocupava, o infractor era enviado para um
convento da Ordem, onde podia ser encarcerado. Além disso, a pena incluía também a perda de cavalo e das armas bem como a
obrigação de comer no chão durante um ano, de três dias por semana a
sua refeição consistir apenas em pão e água, bem como receber disciplina, castigos
físicos, todas as sextas-feiras. O castigo seria ainda mais duro se o
infractor fosse um freire clérigo. Também na Ordem do Hospital
este preceito evangélico era observado e daí o cuidado em proibir a entrada na
Ordem, como freire professo, daqueles que haviam contraído previamente
matrimónio. Apenas na Ordem de Santiago o voto de castidade adquiriu
características especiais, dado que era
permitido aos seus membros contrair matrimónio. Contando, pois, com
freires casados no seu seio, os
espatários viram-se obrigados, neste ponto concreto, a reformular a Regra
que lhes serviu de base, a dos cónegos regrantes de Santo Agostinho.
Assim, se aos freires
clérigos era exigida a castidade total, aos freires cavaleiros casados
aconselhava-se a castidade conjugal. Esta última não vedava os contactos entre
os esposos, mas estabelecia períodos de abstenção sexual que coincidiam com os
tempos e festas litúrgicas, tal como se exigia aos laicos de um modo geral.
Nestes períodos, as mulheres dos cavaleiros deveriam recolher-se aos mosteiros
femininos da Ordem. Esta marca de originalidade dos espatários relativamente
às outras Ordens Militares encontra-se justificada na própria Regra:
- o casamento era encarado como uma forma de evitar tentações de luxúria e, como tal, era aconselhado a solteiros e a viúvos, de ambos os sexos. Todos os casamentos, contudo, precisavam de licença prévia do mestre, sob pena do freire espatário perder a comenda ou a tença que usufruía. Por outro lado, mas com o mesmo objectivo, eram severamente punidas as relações extra-conjugais e as mancebias.
A presença das mulheres, ou viúvas, dos espatários, na Ordem fez
com que, entre finais do século XII e meados do século XIII esta Ordem fundasse
mosteiros femininos, onde eram também acolhidos os filhos menores dos
cavaleiros, durante a ausência destes em guerra. Situados inicialmente longe da
fronteira, estes mosteiros femininos mantiveram-se sempre alheios às
actividades guerreiras, mas o património que conseguiram juntar tornou-os por
vezes núcleos importantes da Ordem de Santiago. Em Portugal, existiu apenas um
destes mosteiros, o de Santos-o-Velho,
fundado em 1271, com património
dotado pelo mestre». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de
Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.
Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT