Fernão Lopes, a verdade e a história
«(…) A partir do século XX, alguns historiadores chamaram a atenção para
a suposta parcialidade do cronista. Horácio Ferreira Alves, por exemplo,
alertou para o facto de as crónicas antigas, em que Fernão Lopes se
baseou para escrever a história dos reis antigos, terem desaparecido depois
dele. Na sua opinião, este desaparecimento foi intencional, já que a sua
existência podia contrariar a verdade,
contada por Fernão Lopes. Enaltecer o reinado de João I, cujo filho
sustentava o cronista, era imperioso, mas exigia que se deformassem e
falsificassem os reinados anteriores, particularmente os de Pedro I e de
Fernando I, de modo a que o governo de João I pudesse sobressair e ser aceite
como uma tábua de salvação que reerguia Portugal da crise económica e social em
que mergulhara no final do século XIV.
Ana Paula Sousa sublinhou a urgência da dinastia de Avis em
legitimar as suas origens, a bastardia e o golpe de Estado. Isabel de Barros
Dias afirmou que, quanto mais próximo se está dos acontecimentos narrados,
mais feroz é, a crítica, embora esta se faça de modo velado, não assumido.
Segundo a investigadora, a exaltação dos novos detentores do poder tornava
tentador o aproveitamento a partir de figuras marcadas como negativas, tais
como Fernando I e D. Leonor Teles. E
o que teve a dizer Fernão Lopes sobre
este assunto? Obviamente ele não escutou os reparos que sucintamente
parafraseámos. Mas no seu Prólogo, à Crónica
de D. João I, primeira parte, respondeu já a algumas das questões
suscitadas. Ao escrever as crónicas dos reis passados e do rei presente, João I,
Fernão Lopes afirmou que a sua intenção não fora escrever um romance ou
deturpar os factos históricos, de acordo com as conveniências afectivas e
políticas, como tinham feito alguns historiadores de Castela e de Portugal que
se haviam desviado da direita estrada
e corrido por semideiros escusos.
Tão-pouco foi buscar a eloquência do discurso, pois se outros per ventura em esta crónica buscam formosura e novidade de
palavras e não a certidão das histórias, desprazer-lhes-á de nosso razoado.
O seu objectivo principal foi apenas contar a verdade, qualquer que esta fosse:
- nosso desejo foi em esta obra escrever verdade sem outra mistura, leixando nos bons aquecimentos todo fingido louvor e nuamente mostrar ao povo quaisquer contrarias cousas da guisa que avieram. Se errar, foi por ignorância e não por vontade de deturpar a história, visto que mentira em este volume é muito afastada da nossa vontade.
Acreditamos que a verdade não é nenhum mito, mas que da mesma realidade
surgem sempre diferentes leituras. É uma discussão muito antiga e Fernão
Lopes já alude a ela. Na verdade, as fontes em que nos baseamos reflectem
normalmente a ideologia dominante, mas não necessariamente a realidade. A
equivalência entre facto e relato não existe, porque um é realidade e outro é
narração e representação desse mesmo real. Ou seja, melhor dizendo, não há
relato, o que há é recriação, construção de uma realidade a partir de outra ou
de outras. E neste processo de transmissão da informação entram sempre em jogo
diversos factores que se prendem com o tempo, com a motivação e as
circunstâncias psicológicas, físicas, sociais e históricas envolventes.
Se, para a actualidade, é difícil ser-se exacto no que se conta ou
escreve, para o passado medieval essa questão assume maior relevância, visto
que as fontes rareiam e os que morreram já cá não estão para explicar como tudo
se passou. No caso da História das mulheres medievais, as dificuldades são ainda
maiores, não só porque a informação é geralmente parca e muito pontual, mas
também porque quem a produziu foi, na maioria das vezes, um homem. E este, como
lembrou mais uma vez Georges Duby, omitiu frequentemente o que se passava no
universo feminino:
- Se nos fiássemos demasiado nas palavras dos homens, correríamos o risco de cair no logro, pensando que a mulher estava destituída de poderes, numa posição de pobreza [...] Quando o véu se levanta, [...] vislumbramos um mundo feminino fortemente estruturado como uma pequena monarquia que exerce a esposa do senhor, a dama, que domina as outras mulheres da casa.
Portanto, resta aos investigadores conhecer as fontes possíveis,
relacioná-las, cruzar informações recolhidas com outras emitidas por outros
estudiosos e interpretar. A História é uma súmula de muitas interpretações que
tem, na sua declaração de intenções, o propósito de estar o mais próximo
possível da realidade invocada. E é isso que nos propomos fazer relativamente à
vida de D. Leonor Teles: uma
representação com base nos diplomas estudados, nas versões dos cronistas, em
especial Fernão Lopes, e nas interpretações de muitos. Não sabemos o ano
nem o local certos onde D. Leonor Teles
nasceu. É provável que tenha sido por volta de 1350, em Trás-os-Montes. A sua morte permanece também um mistério.
Julgamos que tenha falecido entre l391 e 1410, em Tordesilhas
ou em Valhadolid». In Isabel Pina Baleiras, Uma Rainha
Inesperada, Leonor Teles, Círculo de Leitores, 2012, ISBN -978-972-42-4706-9.
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