«(…) Mas isso seria abrir excepções que nunca se sabe onde iriam parar;
e habituou-se depressa ao mal: o que aquela gente vivia, afinal, fazia parte da
sua condição, e ele estava ali apenas de passagem, incapaz de encontrar uma
resposta eficaz para além da caridade, que só se praticava perante casos
extremos, ou na altura do Natal ou da Páscoa, em que a tradição o obrigava a
esses gestos. Com o fim das obras a questão resolveu-se; e voltou para casa,
gozando o conforto da civilização, com a luz eléctrica, os esgotos, a água
canalizada, embora por algum tempo tivesse exibido uma aparente misantropia que
acentuou as desconfianças a seu respeito. A rua tinha sido aberta, então, para fazer
a ligação da casa ao esgoto colectivo; e, com a abertura da vala, dizia-se que
tinha aparecido o túnel que ia dar a essa caverna onde ele teria os seus encontros
amorosos.
Um bêbedo contou que se tinha metido lá dentro, e tinha rastejado no
meio de vasilhas cheias de ossos, de tulhas de sal com restos de carne humana,
de fotografias antigas, meio roídas pela humidade, de mulheres belíssimas, de
quem se tinha perdido o rasto. Viam o seu rosto, com a barba por fazer, assomando-se
por trás dos vidros embaciados, espreitando a rua; e pensavam que a única
motivação para se ter tornado um recluso era o sentimento de culpa, um remorso
inextinguível, que lhe tirara o apetite e o sono. A mulher da farmácia, de
resto, contou um dia que o fornecia regularmente com um saco de medicamentos: para
o coração, para os rins, para a cabeça, unguentos contra a dor, pomadas para os
pés, soporíferos.
O homem mata-se com tantos químicos, dizia; mas a verdade é que ele
insistia na vida, e a única altura em que saía era ao domingo de manhã, quando
se barbeava, punha o casaco e a gravata preta, e dava a volta à aldeia, a pé,
passava em frente da igreja, pouco antes da missa, como se fizesse tenção de
ali entrar, e acabava por voltar a casa, sob o olhar assustado da gente mais
nova, que só o conhecia da sua fama, e que o olhava como se fosse um fantasma. Ele
próprio não saberia explicar porque adoptara aquela vida; talvez o desinteresse
pelo mundo lhe tivesse vindo dessa passagem pela casa de campo, e do encontro com
uma rapariga por quem se apaixonou, dias antes de ela embarcar para as mondas
nos arrozais, no meio do Verão, quando o calor ainda aperta: as mulheres com as
pernas metidas dentro de água todo o dia, comidas pelos mosquitos,
enterrando-se no lodo, e regressando à noite para os barracões infectos onde
tentavam dormir. Quando ela voltou, semanas depois, não a conheceu: tornara-se uma
velha, com as pernas disformes, o rosto inchado, o cabelo queimado pelo sol. Viu
naquilo uma imagem do seu próprio mundo, que de súbito lhe apareceu com o rosto
da decomposição, antecipando a sua própria morte; e deixou de acreditar em si,
perdendo a fala, como se tudo o que tinha aprendido ao longo de uma vida se tivesse
varrido do seu espírito para dar lugar apenas ao absurdo do ser.
Ela olhou-o, rindo-se, à espera que ele lhe falasse como tinha
acontecido antes de ela partir, com as palavras triviais com que o sedutor
procura envolver a sua presa; e percebeu que algo se tinha parado dentro dele,
quando viu o seu olhar de repente perdido, à procura de uma referência para aquele
corpo que lhe parecia definitivamente estranho. A reacção dela foi fugir, como
se tivesse acabado de enfrentar o demónio; e ele apercebeu-se de que o seu
lugar já não era naquele mundo das leis implacáveis em que sempre acreditara.
Passava os dias sentado numa cadeira, absorto em pensamentos que o
atormentavam.
Começou a deitar fora o que o ligava ao passado: as cartas de família,
postais, fotografias, objectos; esvaziou armários de roupa que já não serviam,
a ninguém, mas que por um hábito sentimental tinha vindo a guardar». In
Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN
972-564-359-3.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT