domingo, 14 de julho de 2013

1851-1853. Herculano Desconhecido. António José Saraiva. «O ‘Portuguez’ há-de apreciar esses actos em relação às conveniências do país e sobre tudo em relação à justiça e à moralidade. Ainda quando uma providência legislativa possa trazer um benefício material…»

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Documentos. Colaboração de Herculano n’O Portuguez
N.º 1, 11 de Abril de 1853,
«(…) O Portuguez não se julga obrigado a reconhecer necessariamente como um acto de reforma e progresso material a tradução em linguagem proximamente portuguesa de qualquer fragmento do primeiro livro de economia francês ou inglês que se encontrou à mão, delido nos períodos pomposos de um relatório abundante de frases e vazio de ideias, ou nas ideias ora obesas, ora raquíticas de uma lei incompleta, monstruosa e contrária à autonomia nacional. O Portuguez há-de apreciar esses actos em relação às conveniências do país e sobre tudo em relação à justiça e à moralidade. Ainda quando uma providência legislativa possa trazer um benefício material, se esse benefício se comprar à custa da moral e da justiça, o progresso verdadeiro deixará de existir, e a sociedade caminhará como o império romano, pelo aumento dos gozos e cómodos externos para a dissolução interior.
É. por este aspecto; é acerca das relações de harmonia entre o progresso material e moral que o Portuguez se persuade ter uma bela missão a aceitar e um grande dever a cumprir. O resultado dos acontecimentos de 1848, o cansaço, e o desalento, a que as nações são sujeitas, como os indivíduos, depois de violentos abalos, estão sendo habilmente aproveitados pelo espírito de reacção na Europa. Todos os princípios sociais e políticos que serviam de norte até, àquela época de grandes convulsões ao progresso lento da civilização moderna foram então combatidos e tornados problemáticos na arena ardente em que lutaram durante dois anos as facções e as escolas. De todas as conquistas do século só deixou de ser posta em dúvida a legitimidade do progresso material. Maís do que isso: sincera ou calculadamente os partidos e as seitas buscaram persuadir às nações de que [sic] para elas esta era a questão suprema ou antes única, e houve muito quem as aconselhasse a romperem com todas as doutrinas de ordem moral para atingirem rapidamente a um bem-estar imaginário. Os efeitos destas tendências sentiram-se desde que o espírito humano se dirigiu para esse lado. O poder depois de comprimir a anarquia com o ferro procurou afogar a liberdade com a preversão das ideias. À tirania diz hoje aos povos os homens de opiniões mais exageradas concordam em declarar vãos os princípios da liberdade e dignidade humanas, e julgam ociosas as questões sociais que não tiverem por alvo o aumento em extensão e intensidade da riqueza pública e dos cómodos e gozos facilitados a todos os indivíduos. Cedei-nos, pois, todas essas vaidades, e dar-vos-emos o bem-estar material.
E o czar, e o rei de Nápoles e a corte de Roma e o imperador dos Franceses mandaram construir caminhos-de-ferro, e criar escolas agrícolas e industriais, e introduzir máquinas de vapor, enxugar pântanos e rotear baldios e desenvolver o comércio, e promover a barateza dos capitais. Eles aceitaram as consequências das doutrinas de certos partidos, que ou hão-de esquecer-se de que há no mundo uma coisa chamada lógicas, ou hão-de aplaudir esse despotismo materialmente progressista que triunfa quase por toda a parte. Nos países onde ainda resta o governo parlamentar, ao menos como princípio de direito público, embora mais ou menos viciado na realidade dos factos, cumpre combater aquele fatal sofisma do absolutismo. É o que o Portuguez entende ser a sua principal e mais bela missão. À exageração do princípio utilitário deve combatê-la, como todas as outras exagerações, que deram em resultado a humilhação por que está passando grande parte da Europa».

In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto, 1953.

Cortesia de Edições SEN/JDACT