Documentos. Colaboração
de Herculano n’O Portuguez
N.º 1, 11 de Abril de 1853,
«(…) O Portuguez não se julga
obrigado a reconhecer necessariamente como um acto de reforma e progresso material
a tradução em linguagem proximamente portuguesa de qualquer fragmento do primeiro
livro de economia francês ou inglês que se encontrou à mão, delido nos períodos
pomposos de um relatório abundante de frases e vazio de ideias, ou nas ideias
ora obesas, ora raquíticas de uma lei incompleta, monstruosa e contrária à
autonomia nacional. O Portuguez há-de
apreciar esses actos em relação às conveniências do país e sobre tudo em relação
à justiça e à moralidade. Ainda quando uma providência legislativa possa trazer
um benefício material, se esse benefício se comprar à custa da moral e da
justiça, o progresso verdadeiro deixará de existir, e a sociedade caminhará como
o império romano, pelo aumento dos gozos e cómodos externos para a dissolução
interior.
É. por este aspecto; é acerca das relações de harmonia entre o progresso
material e moral que o Portuguez se
persuade ter uma bela missão a aceitar e um grande dever a cumprir. O resultado
dos acontecimentos de 1848, o
cansaço, e o desalento, a que as nações são sujeitas, como os indivíduos,
depois de violentos abalos, estão sendo habilmente aproveitados pelo espírito
de reacção na Europa. Todos os princípios sociais e políticos que serviam de
norte até, àquela época de grandes convulsões ao progresso lento da civilização
moderna foram então combatidos e tornados problemáticos na arena ardente em que
lutaram durante dois anos as facções e as escolas. De todas as conquistas do
século só deixou de ser posta em dúvida a legitimidade do progresso material.
Maís do que isso: sincera ou calculadamente os partidos e as seitas buscaram
persuadir às nações de que [sic] para elas esta era a questão suprema ou
antes única, e houve muito quem as aconselhasse a romperem com todas as
doutrinas de ordem moral para atingirem rapidamente a um bem-estar imaginário.
Os efeitos destas tendências sentiram-se desde que o espírito humano se dirigiu
para esse lado. O poder depois de comprimir a anarquia com o ferro procurou
afogar a liberdade com a preversão das ideias. À tirania diz hoje aos povos os homens de opiniões mais exageradas
concordam em declarar vãos os princípios da liberdade e dignidade humanas, e
julgam ociosas as questões sociais que não tiverem por alvo o aumento em extensão
e intensidade da riqueza pública e dos cómodos e gozos facilitados a todos os
indivíduos. Cedei-nos, pois, todas essas vaidades, e dar-vos-emos o bem-estar
material.
E o czar, e o rei de Nápoles e a corte de Roma e o imperador dos
Franceses mandaram construir caminhos-de-ferro, e criar escolas agrícolas e
industriais, e introduzir máquinas de vapor, enxugar pântanos e rotear baldios
e desenvolver o comércio, e promover a barateza dos capitais. Eles aceitaram as
consequências das doutrinas de certos partidos, que ou hão-de esquecer-se de
que há no mundo uma coisa chamada lógicas, ou hão-de aplaudir esse despotismo
materialmente progressista que triunfa quase por toda a parte. Nos países onde
ainda resta o governo parlamentar, ao menos como princípio de direito público,
embora mais ou menos viciado na realidade dos factos, cumpre combater aquele
fatal sofisma do absolutismo. É o que o Portuguez
entende ser a sua principal e mais bela missão. À exageração do princípio
utilitário deve combatê-la, como todas as outras exagerações, que deram em
resultado a humilhação por que está passando grande parte da Europa».
In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições
SEN, Porto, 1953.
Cortesia de Edições SEN/JDACT