Um só homem possui todo o mundo,
a lua enche de luar todo o mar... In Marânus
Prefácio
«(…) Não há na nossa literatura poema mais perturbador e incandescente,
poema do Desejo como forma da existência buscando desde a Origem novas formas
para se encarnar em vão e nessa busca criando o que não existe e por fim o
verbo escuro em que se redime da sua própria insatisfação. É, a esse verbo
escuro que Pascoaes chamou com nome nosso imemorial Saudade, pondo
nele nova substância, a do mesmo Desejo transfigurado pela consciência da sua
imperfeição divinamente criadora. Nunca esse verbo escuro resplandeceu nas
trevas com mais luminosa evidência que nas páginas, hoje ainda como ocultas,
deste canto único onde o Inferno e o Paraíso de que somos feitos misturam o seu
fogo e a sua água eternos». In Eduardo Lourenço, Dezembro de 1990, Roma
Galiza, terra irmã de Portugal,
que a divina Saudade transfigura,
a tua alma é rosa matinal,
onde urna lágrima de Deus fulgura.
Terra da nossa infância virginal,
altar de Rosália e da Ternura,
Dedico-te estes versos, que, uma vez,
compus, em alto cerro montanhês.
Marânus e Eleonor
Marânus era o ser que divagava,
consigo, pelo mundo solitário.
A sua própria alma o alimentava
e dava-lhe a beber das suas lágrimas.
Empecera-lhe a noite. E, desde então,
rodeado de espantos e de assombros,
vive numa perpétua inquietação.
Falho de ânimo e pobre de esperança,
apenas o salvou da negra morte
esta misteriosa simpatia,
que, semelhante à tua lira, Orfeu,
as feras enternece e a luz do dia!
Atrai as selvas virgens que murmuram,
os inertes penedos taciturnos
e as estrelas do céu que nos procuram,
com seus olhos de eterna claridade.
Por isso, ele ia andando, neste doce
enlevo da paisagem, neste encanto,
que paira, magoado, sobre as cousas,
onde, em silêncio, jaz divino canto...
Nos princípios do outono, quando as nuvens
aparecem nos montes revestidos
de folhinhas doiradas, e, nos vales,
Há frios tons de cinza, humedecidos,
chegou, já tarde, a um sítio, com pinheiros,
fragas cheias de musgo, tojo bravo,
que domina dois íngremes outeiros,
um rio, verdes campos e a montanha.
Ali, parou Marânus. Do infinito,
uma infinita lágrima descia
e lhe tomava o coração aflito
e perturbado de íntimos receios,
quando viu, perto dele, uma Figura
desenhar-se, no escuro do arvoredo,
em diluídas formas e apagados
contornos de esplendor e de segredo.
E, atónito e surpreso, olhava, olhava
aquela milagrosa aparição,
que, em brumas transcendentes, disfarçava
seu angélico rosto de mulher.
A lua, que era nova e ia espargindo
um luminoso e vago encantamento
nas ermas coisas lívidas, sorrindo,
mostrou-se, dentre as nuvens, que se abriram.
E Marânus, ao vê-la, mais perfeita,
banhada em luz, lhe disse, de repente:
Quem és tu? De onde vens? Não te conheço!
És da terra e da vida? Ou simplesmente
ilusório fantasma de beleza?
Destas sombras que surgem, ao luar
e à superfície vã da Natureza?
Sentimentos aéreos, flutuantes,
do coração da noite, esparso e oculto?
E o silêncio gemia trespassado
pela voz de Marânus, que era um vulto
de som, alada sombra que se ouvia...
E a nocturna Visão, aproximando-se
do nocturno Viandante:
[…]
In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT