Ser, parecer
Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida.
Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós,
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.
Quissico, 1981
Eles
Desde que chegaram
ficou sem repouso a baioneta
e os chicotes tornaram-se
atentos e sem desleixo.
Lançaram fogo
à dolorida geografia
esquartejaram montanhas
secaram fontes e rios
na memória dos seus crimes
se anichou a seta da vingança.
Trouxeram-nos a luta
sem trégua
e da carne do vencido,
durante séculos,
fizeram silêncio e cinza.
Na esperança que nos restava
escavaram um cego labirinto
instalaram pontual a humilhação
para que os nossos sonhos
não tivessem residência
e para que não déssemos conta
de que havíamos nascido
os nossos nomes nos retiraram.
Quanto tempo demorou esse tempo
quantas palavras sepultámos nesse silêncio
em quantos bares se esfumou a nossa
revolta,
em quantos planetas sem luz
tivemos que esperar por uma bandeira?
Nós éramos tribo
carvão aceso nos altos-fornos
e pelo gesto escravo em nossas mãos
se poliram os minerais
se alinharam caminhos-de-ferro
se uniram pontes
fazendo morrer abismos e torrentes
transpiram de vapor as grandes fábricas
e uma emaranhada teia
recobriu a nossa dimensão
despovoando-nos
adiando a nossa vida
por incontáveis vidas.
Guerreiros antigos
desceram da residência das águias
e com os pés despidos
untaram a terra de chamas
para que de esperança e coragem
fosse temperado o tempo por vir.
Nos idiomas vários
enrolámos sílabas submersas
clandestinos rios turbulentos
enroscaram-se nos lagos adormecidos
Colocámos o sonho no arco
e dele fizemos flecha certeira
e transportámo-nos no vento
como se fôssemos a semente derradeira.
Para sermos homens
desocupamos o silêncio
e com um firmamento de esperança
cobrimos o rosto ferido da nossa Pátria
Dezembro 1979
Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho-Poesia’
JDACT