Definir o pudor
«Sentimento de vergonha, de incómodo que se tem ao fazer, ao enfrentar
ou ao ser testemunha das coisas de natureza sexual; disposição permanente para
esse sentimento. Incómodo que se sente perante aquilo que a dignidade de uma
pessoa parece proibir. A definição do dicionário introduz já duas distinções no
sentimento do pudor: pudor corporal, sexual, ou pudor dos sentimentos, por um
lado; pudor contingente ou permanente, por outro. Noutras palavras ou com
outras cambiantes, estas distinções sempre existiram.
Pudor dos sentimentos.
Num romance do século XIII o belo Escanor, chora a morte da sua amiga.
Os seus companheiros repetem-lhe que não convém a um homem como ele manifestar
tão grande dor e quando o cavaleiro foi juntar-se aos seus pares conteve-se o
melhor que pôde, pois tinha nojo e vergonha de mostrar a sua dor. Sob o nojo de
Escanor esconde-se uma das formas mais constantes do pudor: a de os homens
mostrarem as suas lágrimas. A mais bela análise deste pudor encontra-se no
século XVII, em Les caractères, de La
Bruyère: Como é que rimos tão
livremente no teatro e temos vergonha de chorar lá?, interroga-se o
moralista, antes de descrever longamente as maneiras de conter as lágrimas, até
ao mau rir com que queremos
encobri-las. Análise que nada perdeu da sua actualidade… a não ser
porque o cinema nos permite agora chorar no escuro, enquanto nos leva a
dissimular o riso.
O pudor dos sentimentos não tem história. Quando lhe arranjam uma, é
curiosamente paralela à do pudor corporal. Encontraremos, por exemplo, no
século XVII, uma componente social do pudor: não é de boa educação mostrar-se
nu a uma pessoa a quem se deve respeito, mas é permitido despir-se perante um
criado. E curioso observar que o pudor dos sentimentos conheceu então esta
mesma inflexão: Na presença dos
Grandes e de todos aqueles que respeitamos, desvia-se o rosto para rir ou para
chorar, anota La Bruyère. Visto deite ângulo, o pudor surge mais como
uma enfermidade do que como uma virtude. Serve para dissimular uma fraqueza, um
ridículo, a falta de uma armadura, as lágrimas não ficam bem ao homem, como as
palavras grosseiras à mulher. E é aqui que a história volta a entrar no pudor
do sentimento. Porque as fraquezas são uma questão de moda.
Foi moda durante muito tempo, por exemplo, esconder as virtudes. Os
salões onde La Rochefoucault recolheu as suas máximas tinham feito do
amor-próprio a suprema armadilha, motor de todas as paixões e de todos os vícios.
Edme Rétif tinha guardada, como uma relíquia, a carta elogiosa que o seu
mestre-escola dirigira a seu pai. Lia-a à família de vez em quando, mas tinha o
cuidado de saltar a passagem em que o mestre declarava melhor que vós, corar por nos dizerem que somos melhor que o nosso pai? As três palavras,
quase apagadas, foram encontradas depois da sua morte pelo seu filho Nicolas.
Edme Rétif tinha um pudor natural que não lhe permitia abrir a boca sobre os
seus sentimentos.
Pudor bem esquecido hoje, quando o louvor em boa ordem começa pelo
próprio. Mas, se perdeu o pudor do amor-próprio, o século XX inventou outros,
desconhecidos do Grande Século. Escondemo-nos para fazer o sinal da Cruz, observa
Monsenhor Lustiger, que antigamente se multiplicava à vontade. Escondemo-nos
para escrever os primeiros poemas, quando, há cinquenta anos, sonharíamos ser
um novo Rimbaud. Porquê esconder o
melhor e exibir o pior?, interroga-se Michel Polac, que confessa este
género de pudor. Não, não se trata do verdadeiro e do falso, do melhor e do pior,
é muito simplesmente boa educação e pudor. É indecente exibir dignidade, nem
falo da angústia, indecente falar de si próprio, indecente fazer perguntas
indiscretas: porque vive?
São estes os pudores do nosso século, e muitos outros, como falar de
dinheiro e permitir que nos ofereçam um copo. Vergonha do que hoje se considera
fraquezas. Pressente-se aí o laço que
une pudor corporal e pudor dos sentimentos. É errado tentar distinguir neste vínculo
um pudor exterior e um pudor interior. Trata-se, com efeito, da mesma atitude.
A vergonha da nudez nasceu numa época em que mostrar-se nu era sinal de fraqueza,
como na Idade Média, ou de ridículo, como no século XIX. Hoje, a moda
quer que a literatura, as artes, a publicidade se libertem do pudor corporal:
por isso ele desapareceu do domínio artístico, enquanto na vida quotidiana
continua a usar-se bastante. Embora limitemos este estudo ao pudor do corpo, não
perdemos de vista que ele se integre numa história muito mais vasta da vergonha
e que é outro o equilíbrio que se estabelece entre vergonhas fisiológicas e
psicológicas». In Jean-Claude Bologne, Histoire de la pudeur, Olivier Orban,
1986, 0História do Pudor, Editorial
Teorema, Círculo de Leitores, 1996, ISBN 972-42-1374-9.
Cortesia de CL/JDACT