domingo, 7 de julho de 2013

A Varanda de Natércia. Literatura. Alberto Pimentel. «Para estas naturezas assim temperadas o amor é como a centelha que brotou da pederneira do pastor e cahiu na ceara madura: basta um olhar para ateiar o incendio»

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«(…) Os cabellos ondados e loiros, recolhidos em tranças de ouro fino; um brando e piedoso mover de claros olhos, onde o verde glauco se espelhava; o nariz lindo e afilado; a bocca graciosa; os dentes, perolas; as palavras, ouro; o riso, brando e honesto; um gesto doce e humilde.

Um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravissimo e modesto;
uma pura bondade, manifesto
indicio da alma, limpo e gracioso.

Esta formosa, que tantos olhares attraia, que os olhos moços compartem com as mariposas o condão de pascer-se nas bellas flores, era filha de António Lima, mordomo-mór do infante Duarte, e de D. Maria Bocca Negra, dama da rainha. Catharina Athayde se chamava. Entre os mancebos de mais gentil aspeito um havia que estava no templo a par de Bento de Camões, geral de Santa Cruz de Coimbra e cancellario da Universidade. Era seu sobrinho, Luiz de Camões, de mediana estatura, cabello loiro, quasi açafroado: o rosto, cheio; o nariz, comprido; nos gestos, mobilidade e promptidão; no olhar, um vivo rutilar de chammas accesas no pensamento: mocidade plena, o momento delicioso em que os dezoito annos ainda não vão longe e os vinte não tardarão a chegar…

Entre os mancebos, mais que os outros alegre e ousado: entre as damas, galanteador affoito. Nas brigas em que por bem ou mal experimentavam forças os moços do mais forte pulso, nunca ninguém lhe viu as solas dos pés, comquanto visse as de muitos: o que quer que fosse da virtude de Achilles. Por isso uns lhe chamavam o Diabo, outros o Trinca-fortes: punham-lhe os fracos estes nomes, vingando com a língua o que não podiam com o braço. Para as damas, um perigo. Diabo que tudo ousava, e para quem o atrever-se era valor e não loucura.

Nunca em amor damnou o atrevimento;
favorece a fortuna a ousadia.

Eram de origem castelhana estes Camões, tiveram por berço o solar de Camaños, nobilitado pela tradição de uma dama que, por suspeitas de adultério, conseguiu desaffrontar sua honra, sujeitando-se a uma prova terrivel:

Experimentou-se algum hora,
da ave, que chamam Camão,
que se da casa onde móra,
Vê adultera a senhora,
morre de pura paixão.

A ave não morrera, e dede então o appellido de Camões encetára immaculado a jornada dos seculos. Luiz, o sobrinho do cancellario, reunia, pois, em si todo o fogo do Meio-Dia: sangue castelhano, berço portuguez. Para estas naturezas assim temperadas o amor é como a centelha que brotou da pederneira do pastor e cahiu na ceara madura: basta um olhar para ateiar o incendio. Emquanto os olhos se lhe prendiam em Catharina, o espirito, extranho a tudo o mais que se passava no templo, dondejava em pensamentos vagos, confusos, doces, tão doces! Como se nascessem da união subtil da mais suave musica e do mais fino aroma. Atravessavam-lhe a mente cantando e perfumando-a».

In Alberto Pimentel, A Varanda de Nathercia, pq 9261 p46 v3, Oficina Tipographica da Empreza Litteraria de Lisboa, 1880.

Cortesia de EL de Lisboa/JDACT