Pré-história de Antero
«(…) Depois de Bom Senso e Bom Gosto Antero publicou um segundo panfleto com o título A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, onde insiste
em que o seu ponto de vista na polémica é mais moral do que literário. O que o
repelia em Castilho era o
oportunismo e a adulação do mundo estabelecido (como ele bem sabia
instintivamente desde a estada de Castilho em Ponta Delgada). Antero tinha-se
formado em Direito em 1863, mas era impensável
para ele ser juiz, advogado ou administrador, dando aplicação aa seu diploma.
Por isso vagueava entre Coimbra, Porto e Lisboa. O seu temperamento fogoso
procurava uma empresa a que se dedicar.
Estava em Lisboa quando escreveu a António Azevedo Castelo Branco
incitando-o a alistar-se consigo nas hostes de Garibaldi: era uma bela
ocasião para sair do aborrecido sopa-vaca
e arroz da vida ordinária; perguntava: Queres ir? Un bel morir tuta la vida onóra.
Mas, em vez de embarcar para Itália, voltou para a terra natal, para junto da
família, donde veio a Lisboa aprender o ofício de tipógrafo na Imprensa
Nacional. Para isto servia o seu
diploma universitário? Mas o seu alvo era outro e grande: fazer-se
operário e (falando metaforicamente) alistar-se no grande exército do proletariado. Mas não se atreveu a
apresentar este pretexto à família. Falou num emprego editorial em Paris.
Paris era a terra clássica das revoluções e estava ainda para vir a
maior de todas: a Comuna de 1871.
Precisava de alguma coisa que fizesse ressurgir o seu coração, ou que os factos
dessem razão ao seu cansaço, esta ideia consta de uma carta que, antes de partir,
escreveu a Alberto Sampaio. Chegou a Paris no Inverno de 67. Sofreu com o frio
e a solidão. Nas cartas que escreveu a Alberto Sampaio descreveu o Trabalho com
os chavões da literatura socialista: triste
[...] forçado, partido e dividido. Não há aqui uma única palavra que denote
uma experiência vivida. Mas, em vez da fábrica, sabemos que frequentou cursos
do Collège de France (que são gratuitos), donde, no meio das aulas, saía
para não dar em espectáculo os seus ataques de choro. Olhava as águas turvas do
Sena com pensamentos suicidas.
Ao fim de dois meses escreveu a Alberto Sampaio pedindo-lhe abrigo para
uma estada incógnita na sua quinta de Santana, perto de Guimarães. Recomendava-lhe
o máximo sigilo, pois não queria que os amigos e sobretudo a família soubessem
do seu fracasso. Na quinta e na companhia dos Sampaios refez-se um pouco. Voltou
a Paris no Verão, desta vez acompanhado por Alberto Sampaio. Queria cumprir uma
parte do seu programa inicial: visitar alguns grandes homens mestres da sua
geração. Visitou Michelet, apresentando-se como M. de Bettencourt, da
dinastia dos reis das
Canárias, para lhe oferecer as Odes Modernas em nome do seu amigo Antero de Quental. Dessa visita
ficou-lhe um dito inesquecível do mestre: Je
ne puis me passer de Dieu.
Regressou, por fim, a Ponta Delgada sem ter chegado a filiar-se no grande exército do proletariado,
como um Quixote que dera um tombo. Escrevia a António Azevedo Castelo Branco: A ti, e aos meus amigos peço me desculpem
os ares de forte e altivo combatente que me tenho por mais de uma vez dado, em
palavras. Mas eu era sincero.
Esta aventura malograda não curou o seu desassossego. Dois anos antes
Antero convidara A. A. Castelo Branco para se alistar nas hostes de Garibaldi,
como vimos. Provavelmente, Castelo Branco dissuadira Antero desse projecto. Mas
na ilha de S. Miguel que podia fazer
Antero senão aborrecer-se? A guerra italiana entre o Papa e Garibaldi
continuava e não havia outra; por isso Antero escreveu a outro amigo, Alberto
Sampaio, no Verão de 1868, propondo-lhe
que ambos assentassem praça, mas agora como voluntários nos Zuavos, que eram
uma espécie de brigada internacional ao serviço do Papa contra Garibaldi, que
nessa época atacava Roma. Nestas duas
atitudes opostas só há de comum o desejo de aventura. Antero queria
fugir de si próprio. Manifesta-se aqui o mesmo homem dividido que na Defesa da Carta Encíclica atacava e
defendia com igual eloquência a Igreja Católica. Queria fugir, mas para onde? Diz noutra carta a Alberto Sampaio,
na mesma época.
Finalmente, a porta da aventura abriu-se com a deposição da rainha
Isabel II de Espanha em 1868.
Antero, recém-chegado a Lisboa, estava proposto, por intermédio de João de
Deus, para redactor em língua portuguesa de um jornal democrático e ibérico que
ia ser lançado pelo grupo republicano de Canovas del Castillo. Para valorizar
a sua candidatura preparou um panfleto que se intitulava Portugal perante a Revolução de Espanha. O tema era O que vai a Espanha fazer da sua
liberdade? E nesse panfleto que figura o célebre dito dirigido aos
patriotas portugueses: O único acto
possível e lógico do verdadeiro patriotismo consiste em renegar a nacionalidade.
Mas em Lisboa, voltando uma vez mais da ilha, Antero encontrou os velhos
companheiros de Coimbra, que se tinham dispersado: João de Deus, João Lobo
Moura, os irmãos Faria e Maia, Manuel de Arriaga, Eça de Queiroz e o futuro
cunhado deste, o conde de Resende. Renasceu em Lisboa a atmosfera que no prefácio
das Primaveras Românticas Antero chamará a fantástica e encantada Coimbra.
Segundo Eça (no In Memoriam de Antero),
Antero), organizou estes moços turbulentos, levando-os a ler disciplinadamente
Proudhon. Mas é deste tempo a invenção por Antero, Queiroz e Batalha Reis da
poesia satanista de Fradique Mendes.
Daqui Eça partiu para o Egipto e Antero embarcou num veleiro para a América do
Norte. Quando voltaram, procurou-os Oliveira Martins».
In Tertúlia Ocidental. Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira
Martins, Eça de Queiroz e Outros, António José Saraiva, Herdeiros de António
José Saraiva e Gradiva Publicações, 1996, ISBN 972-662-475-4.
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