Fusão com Maria de Betânia
«(…) Os passos evangélicos até aqui inventariados são considerados por
todos os estudiosos e apaixonados pelo assunto como o núcleo duro e ortodoxo a partir do qual se elaborou a
principal versão da hagiografia/biografia de Maria Madalena. Lendo as
cenas sucessivamente pode entender-se como funcionou o processo de síntese
lendária, aglutinando duas unções numa ou multiplicando-as, privilegiando um
evangelista por outro, confundindo-os, pegando no Simão leproso de Betânia e,
talvez por homonímia, transformando-o no fariseu da Galileia. Uma série de
episódios desgarrados vão ser ligados entre si pela necessidade de narrar, de
preencher os vazios entre os fragmentos, de estabelecer uma unidade narrativa coerente,
de criar um romance».
Além destas associações e sínteses, temos os problemas suscitados pelas
mais inesperadas tresleituras ou ignorâncias resultantes do facto de se estar
diante de outro universo cultural. Por exemplo, ainda hoje, para um judeu, deitar água sobre os pés de alguém é uma
expressão idiomática, uma metáfora, que significa o respeito do aluno pelo
professor: o discípulo prova e demonstra que tudo o que sabe aprendeu com o
mestre, o que, não deixando de estar nela implícita, pode suscitar uma outra
leitura da cena das lágrimas. Segundo esta perspectiva, a relação
mestre/discípulo entre Madalena e Jesus pode ser interpretada de modos duplos e
ambivalentes. Só alguém de estatuto superior poderia ungir a cabeça a outrem.
Nesta cena reúnem-se dois gestos de respeito, unção na cabeça/pés e lágrimas/água sobre os pés, como
reconhecimento de um estatuto de superioridade de um ser sobre o outro, mas são
ambos atribuídos a Maria. Se Madalena unge a cabeça de Jesus é mestra dele;
ao derramar-lhe lágrimas/água sobre os pés reconhece-o a ele como mestre,
transformando-se na discípula mais atenta, imagem que vamos encontrar reiterada
nos vários evangelhos gnósticos e apócrifos.
Madalena e os Evangelhos Apócrifos
Embora as características atribuídas a Madalena nos textos canónicos formem
o núcleo duro que vai inspirar a figura popular, não bastam para justificar os
pormenores que vão aparecer nas suas muito variadas representações, em
escritos, pinturas e esculturas. Mesmo
que a figura ficcionalizada da Madalena não cause um grande impacto na arte e
literatura ocidentais até ao início das cruzadas, as metamorfoses da figura dos
evangelhos inaugurou-se no Oriente durante os tempestuosos começos da
Cristandade. É nos textos apócrifos, e outros rejeitados pelo cânone, que
se vão encontrar elementos fundamentais para a construção da vida e figura de
Maria Madalena.
Apócrifo: oculto ou falso
Etimologicamente, apócrifo
significará coisa escondida, oculta.
O termo é aplicado para definir os livros que se destinavam exclusivamente ao
uso privado dos adeptos de uma seita ou iniciados em mistérios. Posteriormente
adquire o sentido de falso ou espúrio.
Porém, inicialmente e face ao Novo
Testamento, como vimos, a designação apócrifo
refere os escritos que, desenvolvendo temas análogos são excluídos do cânone.
Os textos são rejeitados por uma excessiva proximidade temática relativamente
aos oficiais, ou seja, uma semelhança de conteúdos que, do ponto de vista
religioso-ideológico, poderá desencadear e fundamentar interpretações erróneas.
Apesar disto, alguns deles continuam a ser utilizados pelos próprios padres da
Igreja (Clemente de Alexandria, Eusébio, etc.) e algumas festas
litúrgicas não têm outro fundamento escrito. Uma aceitação que vai ter a sua
contraparte mais clara e evidente nas representações artísticas.
Para o nosso percurso, estes textos, contemporâneos da versão oficial,
serão considerados como variantes narrativas de um mesmo episódio que, por
vezes, procuram explicitar ou complementar (não permitindo, ainda, que seja
ignorada a possibilidade de contaminação. Têm um interesse inegável sob uma
perspectiva cultural: Se não são fontes
fidedignas para a história de uma maneira, são-no de outra. Registam as
imaginações, esperanças e medos dos homens que os escreveram; mostram o que era
aceite pelos cristãos ignorantes dos primeiros tempos, o que lhes interessava,
o que admiravam, que ideais de conduta defendiam para as suas vidas, o que
pensavam ir encontrar na próxima».
Em última instância, à semelhança do que acontece com a lenda, têm por função
registar a mentalidade de um tempo e espaço. São úteis e preciosos: para o amante e estudante de arte e
literatura medievais revelam a fonte de parte muito considerável do seu
material e a solução de muitos enigmas. Têm, de facto, exercido uma tão grande
e vasta influência (totalmente desproporcionada aos seus méritos intrínsecos)
que ninguém que se preocupe com a história do pensamento e arte cristãos pode
correr o risco de os negligenciar. É enorme a influência dos Evangelhos
Apócrifos no Ocidente, seja em termos literários como pictóricos: A
Idade Média dispensou-lhes um franco acolhimento. A Legenda Aurea de Jacopo da Varagine (Varazze) e o Speculum Historiale de Vicente de
Beauvais, ao transcrevê-los quase integralmente, sub ministraram abundante matéria
de inspiração para os decoradores das velhas catedrais e para os pincéis de Fra
Angelico ou de Giotto. À revelia das tentativas de correcção e
rasura decorrentes do Concílio de Trento, continuam a inspirar os mais
diversos criadores: Dante, Calderón de la Barca, Milton, Klopstock
e os nossos contemporâneos Paula Rego
e José Saramago».
In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa,
2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT